Usos e costumes

Embora este assunto já esteja razoavelmente superado no meio evangélico, vou usar como exemplo didático o ensino sobre a calça comprida para mulheres. Seria isso um pecado?

Antes de analisarmos qualquer texto bíblico, devemos meditar sobre o que vem a ser uma roupa de homem e uma roupa de mulher. Podemos começar com a seguinte pergunta: Qual a diferença das túnicas usadas pelas mulheres das túnicas usadas pelos homens no velho e no novo testamento?

O livro “Usos e Costumes dos Tempos Bíblicos”, de Ralph Gower, Ed. CPAD, p. 20, nos ensina o seguinte:

“Deuteronômio 22:5. Em vista da túnica ser tão básica, ela era idêntica para homens e mulheres, exceto que a do homem era geralmente mais curta (na altura do joelho) e a da mulher mais longa (na altura do tornozelo) e azul.”

Como visto, a túnica usada no velho testamento era muito semelhante aos vestidos usados pelas mulheres atualmente (na altura do joelho). Logo, fazemos outras perguntas para nossa reflexão: vestido é roupa de mulher? Um vestido, na altura do joelho, é uma roupa de homem ou de mulher em nossa cultura brasileira? Creio que todos dirão que é uma roupa de mulher.

O fato é que há 2000 anos, na cultura judaica, a túnica, que se assemelha ao que chamamos de vestido, era uma roupa de homem e era assim que Jesus se vestia. Será que alguém se arriscaria a dizer que Jesus se vestia como uma mulher? Ou que as mulheres que usam vestidos na altura do joelho se vestem como homens? Ou que os pastores dos dias atuais poderiam, com naturalidade, usar um vestido na altura dos seus joelhos e subirem ao púlpito de uma igreja conservadora sem escandalizar seu público?

Em resumo, com que base eu posso afirmar que um vestido é uma roupa de mulher? Certamente, utilizando a referência do tempo e da cultura do País a que nos referirmos.

Veja-se que o único argumento que posso utilizar para dizer que Jesus não se vestia como uma mulher (segundo nossa cultura) é o fato de que a cultura judaica, naquele tempo em que ele viveu aceitava uma túnica na altura do joelho como sendo uma roupa de homem.

Será que podemos dizer, sem medo de errar, que os escoceses se vestem como mulheres quando usam o kilt? Essa peça do vestuário escocês, parecido com as saias femininas brasileiras é utilizado desde o final do século 14 pelo povo gaélico que vivia na Irlanda. “Com a migração dos gaélicos para a região úmida e chuvosa das Highlands, no norte e no oeste da Escócia, o aparato foi adotado pelos escoceses da região. A peça atual, em formato de saia, é criação escocesa e só passou a ser usada a partir do século 18. No século seguinte, foi adotada como símbolo de identidade nacional e hoje é vestida por cidadãos escoceses e de outros países, como Inglaterra, em ocasiões diversas, como festas formais, eventos da moda ou pela plateia de jogos esportivos.”[1]

De modo semelhante, o que dizer do traje masculino dos indianos?

É com base nesse mesmo argumento cultural e contemporâneo que posso dizer que no tempo moderno e na cultura brasileira uma calça comprida, de corte feminino, é uma roupa de mulher e não uma roupa de homem. A cultura e o tempo em que vivemos nos garante isso, sem que nenhuma mulher que vista uma calça comprida decente escandalize ninguém.

Curiosidade

A título de curiosidade, é bom lembrar que no período do golpe e da ditadura militar brasileira, era comum associar a barba aos homens considerados subversivos, enquanto os militares (imagem “boa”) tinham suas barbas raspadas diariamente. Assim, algumas características dessas classes se tornaram marcantes conforme o grupo a que pertenciam.  Querendo ou não, passou a permear nas mentes da população uma associação em relação ao uso da barba e suas preferências políticas.

Coincidência ou não, aqui no Brasil, desde então, todo crente mantinha sua barba raspada, talvez para preservar um padrão moral em conformidade com a obediência às autoridades constituídas.

Fora isso, não é possível explicar o fato de termos adotado no Brasil esse padrão de barbas raspadas para os crentes, uma vez que a Lei de Moisés e a própria cultura judaica valoriza a barba para os homens.

(Levítico 19:27- NVI)  Não cortem o cabelo dos lados da cabeça, nem aparem as pontas da barba.

Sabemos que, ainda hoje, esse padrão é adotado em algumas igrejas evangélicas. Trata-se de uma exceção, mas há quem entenda que esse é o padrão que agrada a Deus, a despeito da mudança cultural que aboliu esse conceito há anos.

A bíblia proíbe a calça comprida para as mulheres?

Qual o texto bíblico que afirma que a mulher não pode usar calça comprida com corte, cores ou bordados femininos, segundo a cultura brasileira? Seguramente esse texto bíblico não existe. O fundamento utilizado por aqueles que defendem que a mulher crente não deve usar calça comprida é o seguinte:

(Deuteronônio 22:5) A mulher não usará roupa de homem, nem o homem, veste peculiar à mulher; porque qualquer que faz tais coisas é abominável ao SENHOR, teu Deus.

A primeira coisa a ressaltar é que o citado texto encontra-se na lei dada ao povo hebreu pelas mãos de Moisés. Ora, se eu admitir a validade deste texto para os dias atuais, também devo aceitar outro artigo da mesma lei, que se encontra, inclusive, no mesmo livro de Deuteronômio, qual seja:

Deuteronômio 21:18-21) Se alguém tiver um filho contumaz e rebelde, que não obedece à voz de seu pai e à de sua mãe e, ainda castigado, não lhes dá ouvidos, 19  seu pai e sua mãe o pegarão, e o levarão aos anciãos da cidade, à sua porta, 20  e lhes dirão: Este nosso filho é rebelde e contumaz, não dá ouvidos à nossa voz, é dissoluto e beberrão. 21  Então, todos os homens da sua cidade o apedrejarão até que morra; assim, eliminarás o mal do meio de ti; todo o Israel ouvirá e temerá.

Será que o texto da Lei em Dt 22:5 foi Deus quem ditou e que o texto de Dt 21:18-21 não foi? Será que o primeiro texto tem mais valor que o segundo? Será que se pode dizer que o segundo texto é desumano e que o primeiro não é? Mas, se alguém disser: não podemos cumprir o segundo texto porque as leis brasileiras não permitem tal ação, pois isso é homicídio. Então, se tal ato não fosse considerado crime pela legislação brasileira, o apedrejamento do menor insubordinado seria admitido? Claro que não! Pois, isso não está de acordo com o ensino de Jesus. É bom lembrar que Jesus livrou a mulher surpreendida em adultério das mãos daqueles que queriam executar um texto da lei de Moisés cabalmente.

Mas, se eu defender que o cumprimento da lei de Moisés não é exigido somente nos casos em que contrariar os ensinamentos de Jesus, logo, nos demais casos, os preceitos da lei de Moisés que não contrariam os ensinamentos de Jesus deveriam ser cumpridos, certo? Pois bem, então vejamos outro versículo da Lei de Moisés:

(Levítico 12:1-4) Disse mais o SENHOR a Moisés: 2  Fala aos filhos de Israel: Se uma mulher conceber e tiver um menino, será imunda sete dias; como nos dias da sua menstruação, será imunda. 3  E, no oitavo dia, se circuncidará ao menino a carne do seu prepúcio. 4  Depois, ficará ela trinta e três dias a purificar-se do seu sangue; nenhuma coisa santa tocará, nem entrará no santuário até que se cumpram os dias da sua purificação.

Como se vê, o texto de Levítico 12:1-4 não contraria nenhum dos ensinamentos de Jesus. Logo, deveria ser observado. Assim sendo, para sermos coerentes, do mesmo modo que o texto de Deuteronômio 22:5 é exigido das mulheres crentes, deveria, também, ser exigido o cumprimento do texto de Levítico 12:1-4, ou seja, as mães crentes deveriam circuncidar seus filhos ao oitavo dia e também não poderiam ir à igreja durante os primeiros trinta e três dias após o parto. Mas, curiosamente, o texto de Levítico 12:1-4 não é nem citado nas regras doutrinárias das igrejas evangélicas mais rigorosas, ao passo que, tem-se notícia de que há mulheres que não podem receber o batismo nas águas se usarem calça comprida. Também, há aqueles que não permitem que tais mulheres participem dos serviços e atividades da igreja, caso não abandonem o uso da calça comprida.

É bom deixar claro que não estamos defendendo que o homem use roupas de mulher, nem que a mulher se vista como o homem, pois bem sabemos que Deus não quer o homem travestido, ou seja, que o homem se vista como se fosse uma mulher e se passe por mulher, demonstrando sua insatisfação com o seu próprio sexo. De igual modo, Deus não deseja que a mulher se vista como se fosse homem, renegando sua natureza feminina em prol de um desejo se ser homem. Deus deseja que o homem seja homem e que a mulher seja mulher (Rom. 1:26-27).

Versículos isolados não podem servir para estabelecer uma crença. Ao contrário, devemos observar se as nossas crenças não estão firmadas em eixo deslocado da bíblia.

Qual a recomendação bíblica para as mulheres?

No que diz respeito à igreja de Jesus, os usos e costumes devem observar o seguinte texto:

(1 Timóteo 2:9) Da mesma sorte, que as mulheres, em traje decente, se ataviem com modéstia e bom senso, não com cabeleira frisada e com ouro, ou pérolas, ou vestuário dispendioso,

(1 Ts 4:4-5)  que cada um de vós saiba possuir o próprio corpo em santificação e honra, não com o desejo de lascívia, como os gentios que não conhecem a Deus;

Seja como for, a mulher ao se vestir, como mulher, deve primar pela decência, modéstia e bom senso, ou seja, deve se mostrar feminina sem o propósito de comunicar sensualidade lasciva com seu modo de vestir. Não convém que as mulheres se vistam com a intenção de atrair para si olhares de desejos dos homens, pois o seu principal atrativo deve estar no seu interior e não no seu exterior.

vivendo em sinceridade e união

Se alguma mulher crente, apesar desses argumentos, entende que calça comprida é roupa somente de homens deve agir conforme sua consciência e usar somente saias, seja na igreja, seja em casa, seja no trabalho etc. Assim não estará pecando contra sua própria consciência.

(Rm 14:1-5) Acolhei ao que é débil na fé, não, porém, para discutir opiniões. 2  Um crê que de tudo pode comer, mas o débil come legumes; 3  quem come não despreze o que não come; e o que não come não julgue o que come, porque Deus o acolheu. 4  Quem és tu que julgas o servo alheio? Para o seu próprio senhor está em pé ou cai; mas estará em pé, porque o Senhor é poderoso para o suster. 5  Um faz diferença entre dia e dia; outro julga iguais todos os dias. Cada um tenha opinião bem definida em sua própria mente.

Por fim, na condição de irmãos em Cristo, devemos compreender nossas diferenças sem deixar que isso erga um muro entre nós. Se temos dúvidas quanto ao modo como Deus nos aceita em relação ao que vestimos, não devemos ter dúvida quanto ao desejo do Senhor de que vivamos em união:

Como é bom e agradável quando os irmãos convivem em união! 2. É como óleo precioso derramado sobre a cabeça, que desce pela barba, a barba de Arão, até a gola das suas vestes. 3. É como o orvalho do Hermom quando desce sobre os montes de Sião. Ali o Senhor concede a bênção da vida para sempre. (Salmos 133:1-3)

Em 30 de junho de 2016

Pastor Sólon Pereira



[1] https://mundoestranho.abril.com.br/materia/por-que-escoceses-usam-saia