Pentateuco: contestando Jean Louis Ska

Pentateuco: contestando Jean Louis Ska

O presente trabalho é resultado da leitura do livro “Introdução à Leitura do Pentateuco”, de autoria de Jean Louis Ska. O propósito é apresentar alguns pontos que marcaram a leitura dessa interessante obra, em especial quanto aos registros que, na minha leiga compreensão e sob uma visão cultual, há dificuldades em se aceitar as teses apresentadas e defendidas pelo autor.

 

Para tanto, reduziu-se o escopo deste trabalho ao exame de algumas partes do livro que apontam para inconsistências, contradições e problemas supostamente existentes no contexto legislativo, literário, narrativo e redacional do pentateuco.

Pr. Sólon Lopes Pereira


OBSERVAÇÕES INICIAIS

 

Significado da palavra Pentateuco

 

Com base nos ensinamentos de Jean Louis Ska, o termo grego pentateuchos (biblos), do qual provém, em latim, pentateuchus (liber) é palavra composta de penta, "cinco", e teuchos, "instrumento", "utensílio". O primeiro significado desta última palavra era estojo ou recipiente cilíndrico dos rolos; depois, por metonímia, o conteúdo, ou seja, o rolo. Pentateuco significa, pois: "cinco livros", ou melhor, "cinco rolos". Assim, o pentateuco é constituído dos 5 primeiros livros da bíblia.

 

No hebraico, porém, o nome desses livros corresponde à primeira palavra importante deles:

 

beresit = "no princípio" = livro de Gênesis;

semôt = "Os nomes" = livro do Êxodo;

wayyiqrã = "Ele chamou" = livro de Levítico;

bemidbãr = "No deserto [do Sinai]" = livro de Números

debãrím = "As palavras" = livro de Deuteronômio.

 

A relação do o pentateuco com os livros proféticos

 

No livro do profeta Malaquias, temos a conclusão, praticamente, de todo os livros proféticos. E no que tange à relação dos livros proféticos com a lei mosaica (o Pentateuco), notam-se quatro elementos essenciais:

  1. A leitura dos profetas deve ser uma maneira de "recordar" a lei de Moisés. Nessa perspectiva "canônica" da Bíblia, a profecia atualiza a lei e a mantém viva na memória de Israel.
  2. A lei de Moisés é lei divina. Divina e não humana a sua autoridade. Em termos mais modernos, a lei de Moisés é fruto de uma revelação e não da razão humana.
  3. Essa lei está, sobretudo, no Deuteronômio. Nele, YHWH aparece no monte Horeb, não no Sinai - por exemplo, em Dt 5,2 e Ex 19,1. A expressão "leis e costumes" é tipicamente deuteronômica (cf. Dt 5,1; 11,32; 12,1; 26,16).
  4. Dos profetas, apenas Elias é mencionado, porque o mais parecido com Moisés. Como Moisés, ele esteve no Horeb (IRs 19) e ouviu YHWH na caverna (cf. Ex 34). Lembrem-se também os "quarenta dias e quarenta noites" de Ex 24,18; 34,28; Dt 9.9 e lRs 19,8[1].

 

Ligação do pentateuco com o novo testamento

 

A estrutura do Pentateuco e a organização do cânon hebraico são fundamentais para a compreensão do Novo Testamento. A vida pública de Jesus, nos quatro Evangelhos, começa no Jordão, onde João batiza. Por que essa moldura? A resposta vem pronta para quem leu o Pentateuco. Moisés chegou diante do Jordão com seu povo e morreu sem ter podido atravessar essa última fronteira. Ficou, pois, incompleta sua obra. A conclusão do Pentateuco é uma conclusão aberta para a terra que Moisés contempla. Josué terminará a obra iniciada.

 

     Jesus, quando aparece nos Evangelhos, tem missão semelhante. Anuncia a vinda do "reino", ou seja, o dia em que Israel poderá, finalmente, tomar posse de sua terra. O começo do Novo Testamento significa o acabamento da obra incompleta de Moisés. Jesus é um outro Josué.

 

Na realidade, são dois nomes idênticos: Josué, na forma hebraica; Jesus, na forma aramaica. Na cura do paralítico, à beira da piscina de Betesda (Jo 5), Jesus acena para essa temática ao dizer: "Moisés escreveu a meu respeito" (5,46). Moisés anunciara que YHWH havia escolhido Josué para cumprir sua promessa aos patriarcas de dar a terra ao povo. Para Jo 5, Jesus é esse Josué anunciado. Razão por que os Evangelhos começam às margens do Jordão, onde o povo se situa ainda em Dt 34, ao se fecharem as cortinas do Pentateuco e da biografia de Moisés[2].

 

OS PROBLEMAS LITERÁRIOS DO PENTATEUCO

 

Jean Louis Ska destaca, do capítulo III ao V de sua obra, aquilo que, em seus estudos, considera “problemas literários do pentateuco”, apresentando exemplos nos textos legislativos e narrativos, além de interferências redacionais que, no seu entender, provam  que em diferentes épocas os textos legislativos e narrativos foram relidos, corrigidos, elucidados, reinterpretados e atualizados, para atender às novas realidades e às novas interrogações do povo de Israel.

 

Passa-se, a seguir, à apresentação dos problemas identificados pelo autor e às observações que chamam a atenção do leigo, com uma visão ainda cultual da bíblia sagrada.

 

OS TEXTOS LEGISLATIVOS

 

Os textos legislativos têm valor especial porque apresentados sempre como palavra de YHWH, revelada a Moisés e por ele transmitida ao povo de Israel (ver Ex 20,18-21; Dt 5,23-31).

 

Segundo Ska, os textos legislativos mostram “claras divergências” entre si, particularmente os três códigos principais, a saber, o código da aliança (Ex 20,22-23,33), o código deuteronômico (Dt 12,1-26,15) e a lei da santidade (Lv 17-26).  Acrescenta que algumas leis foram escritas com o propósito de corrigir outras, como no caso das leis sobre os escravos, sobre os empréstimos, sobre o amor ao inimigo e o decálogo.

 

Mas, será que as supostas divergências são tão claras e evidentes assim?

 

As leis relativas aos escravos

 

1. O código da aliança (Ex 21,2-11)

 

Quando comprares um escravo hebreu, ele servirá seis anos; no sétimo, poderá ir embora livre, sem nada pagar. Se entrou só, sairá só. Se tinha mulher, a mulher sairá com ele. Se o dono lhe deu uma mulher e ela lhe deu filhos e filhas, a mulher e seus filhos pertencerão ao dono, e ele sairá sozinho. Mas se o escravo declarar: - Eu amo meu dono, minha esposa e meus filhos; não quero sair livre, o dono fará com que se aproxime de Deus e se achegue à porta ou à ombreira, e então o dono lhe furará a orelha com um buril: ficará a seu serviço para sempre.

E quando um homem vender a sua filha como escrava ela não sairá como saem os escravos. Se ela desagradar ao patrão a ponto de ele não a querer mais, fará com que seja resgatada. Não terá o direito de vendê-Ia a um povo estrangeiro; isso seria traí-Ia. E se a quiser para seu filho agirá com ela conforme o costume referente às filhas. Se o dono tomar outra escrava para si, não reduzirá o alimento, a vestimenta e a coabitação com a primeira. E caso não lhe providenciar essas três coisas ela poderá sair gratuitamente, sem nada despender.

 

2. O código deuteronômico (Dt 15,12-18)

 

Se dentre teus irmãos hebreus, um homem ou uma mulher se tiver vendido a ti, e se ele te serviu como escravo, durante seis anos, no sétimo ano, tu o deixarás partir livre de tua casa. E quando tu o deixares livre de tua casa, não o deixarás partir de mãos vazias; cobri-lo-ás de presentes com o produto de teu rebanho, de tua eira e de teu lagar; pois o que lhe deres te vem da bênção de YHWH, teu Deus. Tu te lembrarás de que eras escravo na terra do Egito e que YHWH te resgatou. Por isso é que, hoje, teu dou este mandamento. Mas se este escravo te diz: - Não desejo sair de tua casa, porque te ama, a ti e aos de tua casa, e porque ele é feliz em tua casa, então tomarás uma agulha e lhe fixarás a orelha contra a ombreira de tua porta e ele será pra ti um escravo perpétuo. Agirás do mesmo modo em relação à tua serva. Não julgues muito dificil deixá-Io partir livre de tua casa, pois, tendo te servido durante seis anos, ele te fez lucrar duas vezes mais do que um assalariado; e YHWH, teu Deus, te abençoará em tudo o que fizeres.

 

3. A lei da santidade (Lv 25,39-55)

 

“Se o teu irmão tiver dívidas contigo e se vender a ti, não lhe imporás tarefa de escravo; tratá-lo-ás como um assalariado ou como um morador; ele será teu servo até o ano do Jubileu. Entáo ele sairá da tua casa com os seus filhos e voltará ao seu clã; voltará à propriedade de seus pais. Com efeito, os que fiz sair da terra do Egito são meus servos; não devem ser vendidos como se vendem escravos. Não dominarás sobre ele com brutalidade; é assim que terás o temor do teu Deus.“

 

Segundo Ska, o primeiro texto difere do segundo principalmente no que diz respeito ao tratamento das servas. O código da aliança discriminaria as servas, porque não poderiam ser libertadas depois de seis anos ("não sairá como saem os escravos", Ex 21,7), enquanto no código deuteronômico a lei valeria igualmente para os dois: "Se dentre teus irmãos hebreus, um homem ou uma mulher se tiver vendido a ti...". Ambos servirão seis anos e no sétimo serão libertados (Dt 15,12). Assim também no caso do escravo que quer continuar com seu senhor e permite que lhe fure a orelha com uma agulha: "agirás do mesmo modo em relação à tua serva" (Dt 15,17).

 

De fato, os textos não são idênticos, porém não são excludentes, tampouco contraditórios. Quando o texto do código da aliança afirma que “quando um homem vender a sua filha como escrava ela não sairá como saem os escravos” é importante destacar que o advérbio de modo (como) está marcando uma diferenciação quanto à maneira que uma escrava deve ser libertada, que não será da mesma maneira que o escravo sairá livre. A leitura do texto não permite afirmar que as escravas não serão libertadas de modo algum. Deve-se notar, ainda, que a partir do verso 7 o foco da mensagem muda radicalmente. A partir desse versículo, o texto deixa de tratar da aquisição de mão-de-obra para tratar de mulheres compradas para serem esposas, senão vejamos:

 

Se o dono tomar outra escrava para sinão reduzirá o alimento, a vestimenta e a coabitação com a primeira. E caso não lhe providenciar essas três coisas ela poderá sair gratuitamente, sem nada despender.

 

Veja-se que o texto admite a libertação da escrava (“...poderá sair...”), porém em caso e de modo diferente ao estabelecido para os escravos. As questões que agora se apresentam são as seguintes:

 

a) a referência a um modo de libertação diferenciado para as escravas estaria vedando cabalmente que a escrava alcançasse sua liberdade em outras situações, como faz parecer Ska?

b) estaria Deus proibido de acrescentar outros detalhes quanto à libertação das escravas em outro texto bíblico, no código deuteronômico?

Cremos que não é razoável afirmar que Deus proibiu a libertação das escravas. Quando muito, se pode afirmar que Deus não tratou da mão-de-obra escrava feminina (visando lucro e não coabitação), deixando para fazê-lo no texto deuteronômico, conforme se vê a seguir:

“Se dentre teus irmãos hebreus, um homem ou uma mulher se tiver vendido a ti, e se ele te serviu como escravo, durante seis anos, no sétimo ano, tu o deixarás partir livre de tua casa (...) Agirás do mesmo modo em relação à tua serva. (...) tendo te servido durante seis anos, ele te fez lucrar duas vezes mais do que um assalariado...”

 

Ainda, quanto ao código da aliança e ao código deuteronômico, Ska refere-se a omissões e acréscimos de um em relação ao outro. Cita ausência das cláusulas relativas ao casamento do escravo e da escrava no código deuteronômico e a referência à experiência do êxodo, que só ocorre no código deuteronômico. Essas questões não parecem relevantes, uma vez que os códigos se complementam e em nada se contradizem.  

 

Questão mais complexa só é observada quando da análise do código da aliança e do código deuteronômico em face da lei da santidade (Lv 25,39-55). Esse trecho da lei da santidade, apesar de não mostrar vínculo muito forte com Ex 21,2-11 nem com Dt 15,12-18, relaciona com eles. A primeira parte da lei (Lv 25,39-43) trata dos escravos hebreus e mantém alguns dados semelhantes às leis precedentes, mencionando, novamente, o "irmão", como Dt 15,12, mas sem mencionar a serva. Até aí, temos apenas questões complementares entre os três códigos. Mas, ao analisarmos o termo que extingue a escravidão é possível surgir a seguinte dúvida: os escravos devem ser libertados após sete anos de trabalho ou apenas no ano do jubileu, que ocorre a cada 50 anos? Os textos aparentemente conflitantes são os seguintes:

 

(Ex. 21:2) Quando comprares um escravo hebreu, ele servirá seis anos; no sétimo, poderá ir embora livre, sem nada pagar.

(Dt. 15:12) Se dentre teus irmãos hebreus, um homem ou uma mulher se tiver vendido a ti, e se ele te serviu como escravo, durante seis anos, no sétimo ano, tu o deixarás partir livre de tua casa.

Lv. 25:40 Se o teu irmão tiver dívidas contigo e se vender a ti, não lhe imporás tarefa de escravo; tratá-lo-ás como um assalariado ou como um morador; ele será teu servo até o ano do Jubileu

 

Inicialmente importa esclarecer que Ska se equivocou ao afirmar que “Quem vier a pagar suas dívidas é assumido como assalariado ou morador e não mais como escravo (ebed), como explícito em Lv 25,39-40”. Na verdade o texto não faz referência ao escravo que pagou sua dívida. O texto bíblico é categórico em afirmar que o escravo hebreu não deveria ser tratado como um escravo estrangeiro, o qual poderia ser tratado com mais severidade.

 

Deve-se recordar que escravo e escrava hebreus não são considerados para YHWH como pessoas sem importância. São "irmãos" ou "irmãs" ("seu irmão", Dt 15,12). O código deuteronômico insiste na fraternidade e na solidariedade que devem unir todos os membros do povo de Israel. Nesse contexto, o escravo hebreu (irmão) adquirido em razão de impossibilidade de pagamento de dívidas, deveria receber um tratamento diferenciado, mais humano e fraternal, tal qual se tratavam os trabalhadores assalariados (“...não dominarás sobre ele com brutalidade”).  Logo, não é correto afirmar que esse tratamento fraternal só será dado àqueles que tiverem quitado suas dívidas.

 

Por último, Ska afirma que “a libertação, porém, só acontece de cinqüenta em cinqüenta anos, nos jubileus (Lv 26,40b)” Sobre essa questão é necessário destacar que o texto de levítico 25:8-54 trata especificamente do “ano do jubileu”, regulando os acontecimentos desse evento, que estava programado para acontecer a cada cinqüenta anos. A preocupação dessa passagem é deixar claro que nesse ano a propriedade e a liberdade seriam restauradas. Nesse dia, o "assalariado" volta ao seu clã, ao seu patrimônio e o escravo hebreu retoma a sua liberdade.

 

É corrente na hermenêutica jurídica que a lei especial prevalece sobre a lei genérica naquilo que especifica. Nesse contexto, pode-se compreender que o regulamento específico em relação à escravidão de um hebreu consta do código da aliança e do código deuteronômico, os quais se complementam. Nesse regulamento específico, o tempo máximo da escravidão é de seis anos. Entretanto, quando se trata do ano do jubileu, o regulamento da lei da santidade se torna especial em relação aos demais códigos, sobrepondo-se a eles e ordenando a libertação do escravo hebreu, ainda que não se tenham completado os seis anos de servidão. Ora, num primeiro momento, quando o assunto é escravidão, o código da aliança e o código deuteronômico contêm regra especial em relação ao código da aliança, mas no segundo momento, quando o assunto é jubileu, a lei da santidade é especial em relação aos primeiros.

 

Assim, pode-se afirmar que o escravo hebreu, ou escrava (mão-de-obra), poderia servir a outro hebreu por seis anos, devendo sair livre no sétimo ano (Ex. 21:2 e Dt. 15:12), exceto por ocasião do ano do jubileu, caso em que, mesmo não cumpridos os seis anos, o escravo deveria ser posto em liberdade, pois nesse ano todo escravo deveria sair livre.

 

Portanto, nesse exercício leigo, ousamos responder as questões postas na conclusão de Jean Louis Ska, à pg. 60 da obra em exame, quais sejam:

 

1) Qual dessas leis regula a questão da escravidão?

Resposta: o código da aliança e o código deuteronômico, que se complementam e em nada se contradizem.

 

2) Concretamente, deve-se alforriar o escravo depois de seis anos (Ex e Dt) ou no ano do jubileu (Lv)?

Resposta: dever-se-ia alforriar os escravos hebreus após seis anos de servidão, exceto se o ano do jubileu ocorresse antes de completados esses anos. Nesse caso o escravo deveria ser posto em liberdade, ainda que não tivessem cumpridos os seis anos de servidão.

 

3) Passados seis anos, há de se libertar o escravo apenas (Ex) ou também a escrava (Dt)?

Resposta: tanto os escravos quanto as escravas deveriam ser libertados após os seis anos de servidão, conforme conjugação dos códigos da aliança e deuteronômico.

 

4) Pode-se adquirir um escravo hebreu (Ex, Dt) ou não (Lv)?

Resposta: sim. Em nenhum momento a lei da santidade proíbe a aquisição de escravo hebreu. O que não se admite é que esse “irmão” seja tratado com brutalidade, devendo ser tratado como se tratavam os trabalhadores ou os moradores temporários.

 

5) O Pentateuco encerra essas leis contraditórias, que gozam da mesma autoridade divina e mosaica, porque transmitidas todas por YHWH a Moisés, no Sinai. Foram elas escritas pelo mesmo autor e na mesma época?

Resposta: data vênia, Jean Louis Ska se precipita ao afirmar que as leis do pentateuco são contraditórias, uma vez que até aqui ele nada conseguiu demonstrar. Não há contradição entre os códigos estudados, tampouco inaplicabilidade. Quanto à unicidade de autoria do registro “documental” desses códigos, deve-se considerar que a fonte de inspiração é única (Espírito Santo) e o responsável pela transmissão dessa tradição foi Moisés, ainda que ele não tenha sido o redator de todos os escritos. Nem o próprio Senhor Jesus pôs em dúvida essa questão. Quanto ao tempo em que foram registrados é até natural datarem épocas diversas.

 

As leis sobre empréstimo (Ex 22,24; Df 23,20-21; Lv 25,35-36)

 

1. O código da aliança (Ex 22,24)

 

Se emprestares dinheiro ao meu povo, ao necessitado que está contigo, não agirás com ele como um agiota, não lhe cobrarás juros.

 

2. O código deuteronômico (Dt 23,20-21)

 

Não emprestarás a juros a teu irmão: nem empréstimo de dinheiro, nem de alimento, nem empréstimo de qualquer coisa sobre a qual incidam juros. A um estrangeiro farás empréstimos a juros, mas não a teu irmão, para que YHWH, teu Deus, te abençoe em todos os teus empreendimentos na terra na posse da qual irás entrar.

 

3. A lei da santidade (Lv 25,35-36)

 

Se teu irmão tem dívidas e não tem com que te pagar, tu o sustentarás, seja ele um hóspede ou um morador, a fim de que ele possa sobreviver a teu lado. Não aufiras dele nem juros nem lucro. É assim que terás o temor de teu Deus, e teu irmão poderá sobreviver a teu lado.

 

Inicialmente, Ska destaca três pontos. “A lei do Deuteronômio é mais detalhada e mais específica que a do código de aliança, porque exclui todo tipo de vantagem, ao passo que Ex 22,24 falava só de dinheiro. Além disso, a lei do código da aliança faz nítida diferença entre israelita (o famoso "irmão" da legislação deuteronômica) e estrangeiro (23,21a). E, finalmente, a lei coloca uma motivação teológica: ‘para que YHWH, teu Deus, te abençoe...’ (23,21b)”. Ainda acrescenta que “Dá-se uma mudança essencial com essa lei do Levítico: sobre condenar o empréstimo a juros, ensina que é preciso ajudar o irmão com problemas. Não é muito clara a interpretação das palavras ‘hóspede e morador’, mas parece que a lei amplia a norma até os ‘hóspedes’, ou seja, os migrantes. Por fim, a lei do Levítico contém, como a do Deuteronômio, motivação teológica.”

 

Quanto ao detalhamento do código deuteronômico em relação ao código da aliança, não há qualquer dificuldade em aceitar textos que se complementam, como já se afirmou anteriormente.

 

No que diz respeito à interpretação das palavras “hospede e morador”, esses termos foram utilizados apenas para esclarecer que o hebreu (‘irmão”) endividado, ainda que fosse um migrante (hóspede) e não fosse um morador da mesma cidade (vizinho ou parente), não deveria ser explorado em razão de sua condição social.

 

Portanto, nesse exercício leigo, ousamos responder as questões postas na conclusão de Jean Louis Ska, à pg. 61 da obra em exame, quais sejam:

 

1) Qual o dever do credor? Não emprestar a juros (Ex, Dt) ou também ajudar o devedor (Lv)?

Resposta: a intenção expressa nos textos examinados é reduzir os efeitos do endividamento e do empobrecimento das camadas mais frágeis da população. Por isso, dentro dessa motivação fica fácil perceber que a primeira intenção é a de auxílio fraterno ao devedor, seja por meio de empréstimo sem juros ou por meio de socorro e compaixão, para que o endividado não viesse a perecer no meio de seus irmãos.

 

2) A lei vale apenas para os israelitas (Dt) ou também para os forasteiros e os moradores (Lv)?

Resposta: a lei é expressamente dirigida aos israelitas, tanto no código deuteronômico (Dt 23,20-21) como na lei da santidade (“Se teu irmão tem dívidas ...  seja ele um migrante ou um morador” – Lv. 25:35).

 

3) A proibição do empréstimo a juros vale só quanto ao dinheiro (Ex) ou para qualquer coisa (Dt)?

 Resposta: a cobrança de juros ficou vedada, tanto para empréstimos a dinheiro quanto para qualquer outra coisa, uma vez que o código da aliança e o código deuteronômico se complementam e em nada se contradizem.

 

 As leis sobre o jumento do inimigo ou do amor ao inimigo (Ex 23,4-5; DT 22,1-4; Lv 19,17-18)

 

1. O código da aliança (Ex 23,4-5)

 

Quando deres com o boi do teu inimigo ou o seu jumento perdidos, tu os reconduzirás a ele. Ao vires caído, sob o peso da carga, o jumento de quem te odeia, longe de abandoná-lo, tu o ajudarás a ajeitar a carga.

 

2. O código deuteronômico (Dt 22,1-4)

 

Não te esquivarás, se vires extraviado o boi ou o carneiro do teu irmão; não deixarás de o reconduzir de volta a teu irmão. Se este irmão não estiver perto; de onde moras, ou se não o conheceres, recolherás seu animal dentro de tua casa, onde ficará até que teu irmão o venha reclamar; então, tu lho entregarás. Procederás do mesmo modo para com o seu jumento; procederás do mesmo modo com relação ao seu manto; procederás do mesmo com relação a qualquer objeto que teu irmão tiver perdido e tu tiveres encontrado: não poderás te esquivar. Não te esquivarás, se vires o jumento ou o boi do teu irmão cair no caminho: não deixarás de ajudar o teu irmão a levantá-Io.

 

3. A lei da santidade (Lv 19,17-18)

 

Não tenhas nenhum pensamento de ódio contra o teu irmão, mas não hesites em repreender o teu compatriota, para não te onerares com um pecado em relação a ele; não te vingues e não sejas rancoroso em relação aos filhos do teu povo; é assim que amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor.

 

Jean Louis Ska admite que essas leis não envolvem contradições, mas assevera que “dificilmente podem ser atribuídas a um único autor, porque diferem bastante as circunstâncias e as formulações. Por exemplo, por que três leis sobre o mesmo assunto, em três lugares diferentes do Pentateuco?”

Sobre essa questão poderíamos fazer outra pergunta: Deus estaria proibido ou impossibilitado de distribuir e compor suas orientações em quantos textos, épocas e locais diferentes quisesse? Certamente, não.

 

 O Decálogo

 

O decálogo é o único texto que YHWH transmite ao povo, diretamente, sem a mediação de Moisés (Ex 20,1; sobretudo Dt 5,4), ou seja, o próprio Deus escreveu-o nas duas tábuas de pedra (Ex 24,12; 31,18; 32,15; Dt 5,22).

 

Segundo Ska, esse decálogo “aparece em duas formas no Pentateuco: em Ex 20,1-17 e em Dt 5,6-21. Como, em ambos os casos, o mesmo YHWH proclama o mesmo decálogo, no mesmo momento, no mesmo monte Sinai, diante do mesmo povo de Israel, seria normal encontrar o mesmo texto duas vezes. Mas não é assim. Os exegetas apontaram umas vinte diferenças entre a versão de Ex 20 e a de Dt 512. O texto do Deuteronômio contém uma série de acréscimos, em relação ao texto de Ex 20. Em sete casos, trata-se apenas da partícula de coordenação w ("e").

 

É preciso esclarecer que no texto de Dt 5:5 ficou registrado que Moisés estava apenas historiando um fato passado (“nesse tempo eu estava em pé entre o Senhor e vós, para vos notificar a palavra do Senhor...”). Não há razão para se inferir que Moisés estava lendo o que estava escrito nas tábuas da lei, de modo a constar nesse texto deuteronômico as exatas palavras inscritas nas citadas tábuas. Ora, as tábuas deveriam estar confinadas no tabernáculo a essas alturas e não como livro de bolso de Moisés. Logo, é perfeitamente compreensível que Moisés, ao contar essa história ao povo, não tenha reproduzido as palavras de Deus nos exatos termos anteriormente registrados nas tábuas. O que importa é que o conteúdo é o mesmo, ainda que a estrutura do texto e as palavras estejam dispostas de modo diverso.

 

Ainda sobre o decálogo, Ska registra que, “depois do episódio do bezerro de ouro (Ex 32), Moisés destrói as tábuas da lei (32, 15-16.19), mas, a seguir, intercede por seu povo e alcança o perdão divino. Para confirmar a reconciliação, YHWH declara a Moisés: ‘Talha duas tábuas de pedra como as primeiras. Escreverei sobre essas tábuas as mesmas palavras que escrevi sobre as primeiras, que tu quebraste’ (Ex 34,1). A essa altura, o normal seria depararmos com o decálogo de Ex 20,1-17, o que não acontece. O decálogo de Ex 34,11-26 contém prescrições concernentes apenas ao culto exclusivo de YHWH: proibição do culto de outras divindades, leis sobre sacrifícios e calendário litúrgico. Daí o nome ‘decálogo cultual’. Em Ex 34, até a proibição do culto aos outros deuses vem formulada, de modo diferente de Ex 20,3. E temos ainda em Ex 34,11-26 um paralelo da parte final do "código da aliança" (Ex 23,10-19). Há correlações verbais, mas também diferenças na ordem dos mandamentos e nas formulações. Por fim, notam-se muitos pontos de contato entre esse "decálogo cultual" e a segunda parte do "código da aliança" e do "código deuteronômico".

 

Sobre essa questão, merece destacar que as primeira pedras foram quebradas por Moisés tão logo desceu com elas do Monte Sinai:

 

(Ex. 32:15-19) Moisés se voltou e desceu da montanha com as duas tábuas do Documento na mão, tábuas escritas dos dois lados, escritas de uma parte e de outra; as tábuas eram obra de Deus e a escrita era a escrita de Deus, gravada sobre as tábuas. Josué ouviu o barulho das aclamações do povo e disse a Moisés: ‘Barulho de guerra no acampamento! Mas Moisés disse: ‘Não é nem o som dos cantos de vitória, nem o som dos cantos de derrota. O que ouço é som de cantorias!’ Ora, ao aproximar-se do acampamento, ele viu o bezerro e as danças. Moisés inflamou-se de cólera: arremessou as tábuas das mão e as quebrou no sopé da montanha.”

 

Como esperar que as dez palavras registradas em Ex. 20 sejam idênticas às que estavam registradas nas tábuas despedaçadas no sopé da montanha? Mais razoável é entender que o texto constante de Ex. 20 é o texto escrito por Deus na segunda vez que Moisés subiu ao monte. O fato de haver registros em Ex. 34 que não constam em  Ex. 20 é irrelevante. Veja-se que no contexto em que as primeiras tábuas foram escritas (Ex. 20 a 31), YHWH pronunciou a Moisés muitas outras leis. Entretanto, apenas as dez palavras foram registradas nas tábuas pelo “dedo de Deus”. Como não se observa qualquer contradição entre as leis registradas em ambas as ocasiões, não se pode concordar com a expectativa de Ska de que “o normal seria depararmos com o decálogo de Ex 20,1-17”. Esperar o mesmo texto não só seria anormal como impossível, uma vez que o primeiro texto foi destruído, aniquilando-se a possibilidade de comparação entre a primeira e a segunda redação. Só restou a segunda redação que, muito provavelmente, foi utilizada para compor o texto de Ex. 20:1-17. Logo, o texto de Ex. 34 não ficou circunscrito à reprodução de Ex. 20:1-17, permitindo a YHWH acrescentar tudo quanto mais quis e do modo que preferiu, desprendendo-se da esperada organização de Ska.

 

Por fim, Jean Louis Ska assevera que “essas repetições, tensões e contradições entre "discursos divinos" projetam sérios problemas para a crítica. Do ponto de vista literário, é difícil atribuir todos esses textos à mesma pessoa. Qualquer autor sabe evitar essas dificuldades. É bem mais simples pensar que os textos foram redigidos em várias épocas, correspondendo a circunstâncias e preocupações diferentes.”

 

Tal afirmação, “optando-se pela simplicidade de pensamento”, é temerosa, vez que admitir um texto forjado para satisfazer a anseios políticos em certos momentos da história de Israel é conferir razão a Maquiavel: “os fins justificam os meios”. Ou seja, restaria admitir que Deus usa pessoas dissimuladas e que guardam fins escusos (vasos imundos) para o representar perante uma imensidão de outras pessoas que seguirão essas palavras por toda a existência da humanidade. Melhor é confiar que Deus pode usar valos limpos para seus fins puros, justos e bons.

 

(2 Timóteo 2:21 RA) “ Assim, pois, se alguém a si mesmo se purificar destes erros, será utensílio para honra, santificado e útil ao seu possuidor, estando preparado para toda boa obra.”

 

Outra hipótese para se admitir  um pentateuco forjado por circunstâncias políticas é reconhecer que o pentateuco não é um texto inspirado pelo Espírito Santo de Deus, mas uma construção meramente humana, baseada em crenças, tradições, folclores criados ou copiados de outros povos etc.

 

Em uma leitura cultual, que tem sustentado a bíblia ao longo dos séculos, não é razoável aceitar qualquer dessas alternativas. É preciso sair em defesa dos mistérios de Deus, mesmo sabendo que os mistérios divinos frequentemente permanecem ocultos aos sábios e instruídos.

 

Lucas 10:21 (RA)  Naquela hora, exultou Jesus no Espírito Santo e exclamou: Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e instruídos e as revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim foi do teu agrado.

(1 Coríntios 2:4-14 RA) “4  A minha palavra e a minha pregação não consistiram em linguagem persuasiva de sabedoria, mas em demonstração do Espírito e de poder, 5  para que a vossa fé não se apoiasse em sabedoria humana, e sim no poder de Deus. 6 Entretanto, expomos sabedoria entre os experimentados; não, porém, a sabedoria deste século, nem a dos poderosos desta época, que se reduzem a nada; 7  mas falamos a sabedoria de Deus em mistério, outrora oculta, a qual Deus preordenou desde a eternidade para a nossa glória; (...) 11  Porque qual dos homens sabe as coisas do homem, senão o seu próprio espírito, que nele está? Assim, também as coisas de Deus, ninguém as conhece, senão o Espírito de Deus. (...) 13  Disto também falamos, não em palavras ensinadas pela sabedoria humana, mas ensinadas pelo Espírito, conferindo coisas espirituais com espirituais. 14  Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente.”

 

Portanto, nesse exercício leigo, ousamos responder a questões posta na conclusão de Jean Louis Ska, à pg. 67 da obra em exame, qual seja:

 

1) O problema da interpretação é saber qual "lei divina" está em vigor.

Resposta: uma única. Aquela composta por Deus e distribuída pelos textos dos três códigos presentes no pentateuco, uma vez que, até aqui não se observa qualquer contradição ou desarmonia entre eles.

 

OS TEXTOS NARRATIVOS

 

Jean Louis Ska afirma: “Não se pode, razoavelmente, negar a presença de repetições, conflitos e contradições nos livros do Pentateuco. A questão é como explicar esses dados.”

 

De fato, é fácil notar repetições e complementos. Porém, os conflitos e contradições a que se referem o autor não são perceptíveis ou mesmo constatáveis como se afirma. Assim, é perfeitamente razoável negá-los e refutá-los.

 

1. As duas narrativas da criação (Gn 1,1-2,4a e 2,4b-3,24)

 

Afirma Ska que “o leitor do Gênesis, certamente, se surpreende ao ver que Deus, tendo criado o universo em Gn 1,1-2,4a, parece começar tudo de novo em Gn 2,4b-25. E nessa retomada não cria o mesmo mundo. Há muitas diferenças evidentes entre os dois relatos, especialmente no modo de apresentar a criação, mas também em sua teologia.”

 

Vejamos, portanto, quais são os argumentos de Ska que sustentam sua afirmação:

 

Gênesis 1

Gênesis 2 e seguintes

Comentário

Deus cria a luz (1,3-5), depois o firmamento (o céu, 1,6-8) e faz surgir das águas, a terra e crescer as plantas (1,9-13); mas o processo é interrompido, porque Deus cria os astros (1,14-19). Na seqüência, cria os seres vivos: peixes, pássaros, animais e seres humanos (1,20-31). Tudo numa semana.

Gn 2 O universo, antes da intervenção divina, é um deserto sem água. Em Gn 1, só água; aqui, sem água. Ainda não chovera e apenas: um "fluxo" irrigava a terra (2,6). O Senhor forma o primeiro ser humano e planta um jardim, verdadeiro oásis numa estepe desértica.

Em Gn 1, a narração da criação é geral, sem adentrar em detalhes. A partir de Gn 2, YHWH detalhará aquilo que quer detalhar, de modo que esse segundo texto refere-se a pontos específicos do primeiro (geral), sem qualquer contradição. Parte-se do geral para o específico. Os versos 5 e 6 são detalhamentos do que ocorreu entre os versos 10 e 11 de Gn 1. Portanto, não se trata de uma nova narrativa da criação e, sim, de algumas especificidades dela.

Deus cria o primeiro casal, no sexto dia (1,26-27)

Gn 2 cria, primeiro, ãdãm ("ser humano", "homem", 2,7) e, : depois, enfim, a mulher (2,22).

No primeiro texto há uma referência geral da criação do ser humano. Já no segundo, YHWH traz detalhes sobre a forma e a ordem da criação do homem e da mulher.

Gn 1 traz um relato completo da criação do mundo: céu, mar e terra.

Gn 2 não fala da criação do céu e do mar, nem menciona os astros, pois enfoca apenas a terra e os seres vivos que a habitam.

Constata-se, mais uma vez, que YHWH só detalhou aquilo que quis detalhar, uma vez que não se trata de uma nova narrativa da criação, mas apenas de algumas especificações dela.

Gn 1 Deus faz surgir plantas sobre toda a terra, sem nenhuma distinção.

Gn 3,18 há grande diferença entre o jardim de frutos bons (2,9) e o solo fora do jardim, onde crescem somente “espinho e cardo" (3,18).

Novamente se confirma que o primeiro texto (geral) vem sendo detalhado em seguida. Ressalte-se que é equivocada a afirmação de Ska sobre a terra produzir somente  espinho e cardo em Gn 3:18. O texto afirma a existência de ervas comestíveis no campo, que estariam à disposição do homem.

Ao falar de plantas e árvores, Gn 1 não se refere a nenhuma especificamente.

Gn 2 destaca, no jardim, a árvore do conhecimento do bem e do mal e a árvore da vida (2,19b)

Só interessou a YHWH o detalhamento no segundo momento, quando trata dos acontecimentos no Éden, com o fim de contextualizar os fatos relacionadas à queda do homem.

Em Gn 1 todos os seres vivos são vegetarianos, daí a proibição de matar animais.

Após o dilúvio, em Gn 9,2-3, Deus muda essa norma e permite, sob certas condições, que matem os animais e se alimentem de suas carnes. Em Gn 3,21, Deus cobre o homem e a mulher de "vestiduras de pele". Logo, houve morte de animais.

De fato, no primeiro momento, os seres viventes são vegetarianos, mas o texto não registra proibição de se matar animais. Deus não se proibiu desse ato. Também, não consta no texto de Gn 3 qualquer referência da qual se possa deduzir que a morte do animal que forneceu a pele que vestiu Adão e Eva serviu de alimento. Logo, não há contradição entre os textos.

 

Como visto, a narração da criação em Gn 1 é geral e não se preocupa com detalhes, uma vez que a bíblia não é um tratado científico. Como a preocupação bíblica é a humanidade, a partir de Gn 2, YHWH passa a detalhar os acontecimentos que dizem respeito à existência humana, a exemplo do modo peculiar de sua constituição (pó que tornará ao pó, mulher que complementa o homem – uma só carne etc.). Não se observa qualquer contradição entre as duas narrativas. O que se vê é uma lógica de redação: parte-se do geral para o específico.

 

Portanto, nesse exercício leigo, ousamos afirmar que não estão presentes duas narrativas distintas da criação no livro de Gênesis, mas apenas uma harmonizada em dois capítulos seqüenciados.

 

2. a teologia da criação

 

Ska demonstra que divindade que criou o mundo não tem o mesmo nome nas duas narrativas da criação, ou seja Gn 1 e Gn 2. “Na primeira, é chamada, sistematicamente, "Deus" (elohim, 35 vezes em 1,1-2-4a); na segunda, tem um nome duplo: YHWH DEUS (jhwh elohim). O Deus de Gn 1 é transcendente: planeja a criação em todos os seus detalhes, fala e o que diz acontece, permanece invisível e não se confunde com os seres criados.”

 

Nota-se que da mesma forma que Deus apresenta detalhamento de seus atos no segundo texto, também acrescenta outro detalhe de sua natureza. A partir de Gn 2, YHWH passa a tratar com o homem, logo além de Deus (elohim) é Senhor (YHWH).

 

3. O tríplice relato da esposa irmã (Gn 12,19-20; 20,1-8; 26,1-11)

 

Segundo Ska, no livro do Gênesis, pode-se ler, três vezes, uma história que envolve um patriarca, sua esposa e um soberano estrangeiro. Os três relatos seguem o mesmo esquema:

 

1. O patriarca entra em terra estrangeira.

 

2. O patriarca teme pela sua segurança e faz a esposa passar por sua irmã.

 

3. O ardil é descoberto pelo soberano local.

 

4. O soberano convoca o patriarca para censurá-Io.

 

Os três relatos são os seguintes:

 

Gn 12,10-20. Devido a uma fome em sua terra, Abraão parte para o Egito (12,10). Lá chegando, preocupa-se com sua segurança pois sua mulher, Sara, é linda (12,11). A solução - a fraude (12,13) - resolve em parte, porque Abraão acaba bem tratado pelo faraó, mas cria novo problema: Sara é levada ao harém do faraó (12,14-16). YHWH intervém, ferindo o faraó (12,17), que descobre a verdade, convoca Abraão e o censura, devolvendo-lhe a esposa e escoltando-o até a fronteira (12,18-20).

 

Gn 20:1-13. Acontece em Guerar, terra de Abimélek, rei dos filisteus. A história não relata por que Abraão foi viver em Guerar, na região do Négueb, nem explica por que apresentou a mulher como sua irmã e por que Abimélek a tomou para si (20,2). O Deus que intervém nesse episódio se chama elohím, exceto no v. 18, onde é yhwh. Muito curta em 12,10-20, essa intervenção se estende bastante em Gn 20. Deus aparece em sonho a Abimélek e discute com ele longamente (20,3-7). Depois, há a convocação dos servos (20,8) e, num diálogo mais extenso, a de Abraão (20,9-13). No epílogo (20,14-18), todos os problemas ficam solucionados: Abimélek restitui Sara a Abraão, dá-lhe presentes, oferece-lhe guarida em sua terra (20,14-15) e, além de tudo, propõe-se ressarcir Abraão por causa de Sara (20,16). No final, Abraão ainda ora por Abimélek e seus familiares e todos ficam curados (20,17-18).

 

Gn 26:6-11. Nessa passagem os personagens principais são Isaac, Rebeca e, outra vez, Abimélek, rei de Guerar (cf. 20,1-2). Isaac e Rebeca refugiaram-se nessa região, por causa da fome , como fizera Abraão, apresenta a esposa como sua irmã (26,7). Mas não acontece nada. O rei descobre a verdade, por acaso, ao ver pela janela que Isaac se divertia com Rebeca (26,8). O rei repreende Isaac pela mentira e proíbe, sob pena de morte, que se toque em Rebeca (26,10-11).

 

Primeiramente, cumpre destacar que, embora Ska trate essas três passagens como versões de um mesmo acontecimento, tal indicação não é apropriada, uma vez que são três episódios distintos, apesar de discorrerem sobre fatos semelhantes.

 

Dito isso, nesse exercício leigo, ousamos responder as questões postas na conclusão de Jean Louis Ska, à pg. 74 da obra em exame, quais sejam:

 

“Do ponto de vista crítico e literário, é difícil atribuir essas três narrativas a um só autor”: 

 

1) Por que se repetiria ele tão visivelmente?

Resposta: porque são três fatos históricos distintos e não três estórias contadas em versões diferentes. Ora, se um mesmo fato acontecer duas vezes e alguém tiver que relatá-los, deverá mudar a história para não ser repetitivo e desrespeitar as regras de estilo literário? Ao se admitir que esses relatos não passam de fábulas, estórias inventadas para distrair o povo, contadas em versões diversas, afasta-se a inspiração divina e esvazia sua função primordial – a de ser a palavra de Deus. Bem se sabe que o homem é imperfeito e sujeito à cultura em que vive. Porém, ainda que Deus estivesse limitado em razão das limitações humanas, não seria necessário valer-se do caráter deformado de certos homens para se apresentar à humanidade. Deus pode, sim, usar o homem imperfeito, mas certamente escolherá aquele que tem um caráter não apegado à mentira e ao engano.

 

2) Por que lançar mão de dois apelativos divinos diferentes?

Resposta: Deus pode usar quantos apelativos divinos quiser, para se apresentar em oportunidades diferentes.

 

3) Por que Abraão repete a mesma fraude duas vezes? Na segunda vez, nem Sara nem Deus parecem se lembrar do primeiro episódio.

Resposta: não é incomum cometermos atos semelhantes em situações distintas, mas semelhantes. Muitas vezes o pensamento é o seguinte: se funcionou uma vez, pode funcionar de novo. Sabe-se que Abraão também tinha a mesma natureza humana, portanto passível de falhar repetidas vezes, tal como acontece com qualquer ser humano.  Porém, no presente caso, seria inútil justificar as atitudes de Abraão. Não se pode saber exatamente por que agiu dessa ou daquela maneira. O que se pode saber é que o texto do pentateuco registrou dois fatos distintos geograficamente e com terceiros personagens diferentes, embora a história traga semelhança na atitude de Abraão. Também, é fato que não houve preocupação de se mencionar o primeiro fato quando do relato do segundo.

 

4) Isaac, em Gn 26, não apreendeu nada da experiência paterna. E Abimélek reage como se não tivesse também passado pela mesma experiência.

Resposta: o texto afirma que Isaque teve medo de morrer (Gn 26:7). Inúmeras pessoas, em circunstâncias muito menos angustiantes, se esquecem dos valores ensinados por seus pais. O fato é que não há como saber se Isaque tinha conhecimento da experiência vivida por seu pai, para dela se lembrar. O que é certo é que ele sentiu medo. E para preservar a sua vida valeu-se de um artifício para salvá-la. Quanto à Abimeleque, deve-se recordar que em Gn 20 Isaque ainda nem havia nascido. Já em Gn 26, Isaque já estava casado com Rebeca. Considerando que Isaque se casou com 40 anos de idade (Gn 25:20), com certeza já havia transcorrido mais de 40 anos entre a primeira e a segunda passagem. Por isso, o mais provável é que o Abimeleque de Gn 20 seja pai ou avô do Abimeleque de Gn. 26.

 

4. As duas narrativas do episódio de Meribá (Ex 17,1-7; Nm20,1-13)

 

Os dois episódios de Meribá seguem o mesmo esquema e contêm muitos elementos comuns:

 

1. Falta água.

 

2. O povo se queixa a Moisés.

 

3. Moisés dirige-se a YHWH.

 

4. YHWH mostra a solução: tirar a água do rochedo.

 

5. A ordem é cumprida.

 

Ska sustenta que há numerosas diferenças entre as duas narrativas. Conclui que “a segunda narrativa (Nm 20,1-13) é uma segunda versão, reelaborada, do mesmo episódio e não como um episódio semelhante. Se fosse outro episódio, posterior ao primeiro, não se entenderia como ninguém é capaz de resolver o problema da água. Nem o povo, nem Moisés, nem Aarão, nem YHWH lembram do episódio precedente.”

 

No entanto, os argumento de Ska para afirmar que são duas narrativas de um só fato são frágeis e inconsistentes, senão vejamos:

 

1) como ninguém é capaz de resolver o problema da água?

Resposta: tanto a primeira como a segunda passagem deixam claro que só Deus poderia resolver o problema da água. Ninguém mais. Observando o texto de 1 Co 10:4, temos uma confirmação sobre a possibilidade de que a água tenha brotado da rocha em situações distintas:

(1 Coríntios 10:1-4 RA) “1 Ora, irmãos, não quero que ignoreis que nossos pais estiveram todos sob a nuvem, e todos passaram pelo mar, 2  tendo sido todos batizados, assim na nuvem como no mar, com respeito a Moisés. 3  Todos eles comeram de um só manjar espiritual 4  e beberam da mesma fonte espiritual; porque bebiam de uma pedra espiritual que os seguia. E a pedra era Cristo.”

 

5. A história do dilúvio (Gn 6-9)

 

O relato do dilúvio segue uma linha muito clara. Em resumo, estes são os passos do acontecimento:

 

1. Deus descobre a maldade dos homens.

 

2. Deus decide destruir o universo.

 

3. Apresenta-se Noé, o único justo da época.

 

4. Deus pede a Noé que construa uma arca.

 

5. Nessa arca entram Noé e família, mais exemplares de todos os animais do universo.

 

6. Cai o dilúvio. Morrem todos os seres Vivos do universo, exceto Noé e todos os que estão na arca.

 

7. Passado o flagelo, a terra seca e Noé sai da arca com todos os familiares e demais passageiros.

 

8. Deus dá garantias de sobrevivência do universo, após o dilúvio.

 

 Para Ska, é há tensões surpreendentes nesse texto, do qual os exegetas apontam, comumente, seis contradições mais sérias, que passamos a responder em seguida:

 

a) A razão do dilúvio - a maldade do coração humano (6:5) ou a corrupção da terra e de "toda carne" (todo ser vivo) e a violência (6:11-12,13).

Resposta: primeiramente, importa destacar que o relato de Gn 6:5-9 é amplo e geral, promovendo uma introdução ao assunto. A partir de Gn 6:11 tem-se a especificação daquilo que YHWH desejou esclarecer e detalhar. Assim, a primeira motivação (6:5) não exclui a segunda (6:11-13). Ao contrário, a maldade do coração humano é que dá causa à corrupção e à violência humana, ou seja, o segundo relato vem para especificar o que antes havia sido citado de maneira genérica. Logo, não há contradição entre essas duas passagens que se conjugam e se complementam.

 

b) As ordens divinas - Deus pede a Noé que introduza dois casais de cada espécie animal (6:19-20) ou sete casais de animais puros e um casal de animais impuros (7:2-3).

Resposta: de fato, há uma tensão entre as duas narrativas, sendo que prevalece a segunda (sete casais de animais puros e um casal de animais impuros). Veja-se que houve sacrifício de animais puros assim que Noé voltou a pisar em terra seca (Gn 8:20). Sendo assim, o certo é que não havia apenas um casal de animais puros de cada espécie, pois, se assim fosse, o sacrifício significaria a extinção de algumas espécies, o que seria contrário ao propósito divino de preservação das espécies.

 

c) A duração do dilúvio - quarenta dias e quarenta noites (7:4-12) ou um ano inteiro (7:24; 8:1-14).

Resposta: houve chuva torrencial durante 40 dias e 40 noites, porém a inundação perdurou por muito mais tempo, até que as águas baixassem completamente no local em que a arca deveria tocar a terra seca. Mas, a permanência de Noé na arca foi ainda maior. Em Gn 7:11 verifica-se que as chuvas começaram no segundo mês do “ano 600 de Noé”. Após 5 meses (150 dias) as águas minguam, aparecendo a terra seca (Gn 7:24 e 8:3). Somente no sétimo mês é que a arca toca a terra seca, no monte Ararat. Porém, passaram-se mais 6 meses até que YHWH autorizasse a saída da arca, no segundo mês do “ano 601 de Noé”, quando a terra já estava suficientemente seca para o desembarque (Gn 8:14). Assim, embora a chuva tenha durado apenas 40 dias seguidos, passou-se um ano desde que Noé entrou na arca até o dia que desembarcou.

 

d) A natureza do dilúvio - uma chuva forte (7:12; 8,2b) ou um cataclismo cósmico, com rompimento dos reservatórios do abismo e as cataratas do céu (7:11; 8,1-2a).

Resposta: o texto de Gn 7:11-12 é claro e simples. As comportas se abriram e, por conseqüência, houve copiosa chuva. Ou seja, o termo “abertura das comportas do céu” nada mais significa que o rompimento das águas das nuvens em direção à terra, ao que chamamos de chuva torrencial ou tempestade. Não há qualquer contradição nessa seqüência de versículos.

 

e) A saída da arca - após a soltura de vários pássaros (8:6-12) ou depois de uma ordem divina (8:15-17).

Resposta: um após o outro. Isto é, os pássaros foram soltos e, somente depois disso, Noé recebe a ordem divina para desembarcar. Não há qualquer contradição nessa passagem.

 

f) Os nomes divinos - YHWH (yhwh) ou Deus (elohím).

Resposta: os dois. Tanto um como outro eram comumente usados nas narrações do pentateuco. Talvez Deus tenha razões especiais para fazer um certo tipo de referência em um texto ou passagem específica.

 

6. O começo da história de José (Gn 37)

 

Segundo Ska, “a principal dificuldade do episódio de Gn 37 reside nos versículos 28.36 (cf 39,1). Não se sabe, exatamente, quem vendeu José. O texto possibilita muitas leituras, porque José pode ter sido vendido pelos irmãos aos ismaelitas, ou raptado pelos midianitas que o venderam aos ismaelitas, ou ainda raptado pelos midianitas que o venderam no Egito a Potifar, ou, finalmente, raptado pelos ismaelitas e vendido por eles mesmos no Egito. Não é clara a seqüência dos acontecimentos.”

 

Para melhor compreensão dos argumentos de Ska, passamos a reproduzi-los a seguir:

 

“Segundo Gn 37,17-20, os irmão avistam José aproximando-se de longe e decidem matá-Io (37,20). Rubem intervém, para salvar o irmão, propondo que o lancem numa cisterna seca (37,21-22). Aceitam a idéia, tiram a túnica de José e ele é jogado na cisterna (37,23-24) e os irmãos se acomodam para comer (37,25). Aparece, então, uma caravana de ismaelitas e Judá sugere a venda de José àqueles mercadores (37,26-27) e todos apóiam sua idéia (37,27b). Aqui, a história se complica. Pela redação final do texto, chega outro grupo de comerciantes, os midianitas, que prendem José, tirando-o da cisterna para vendê-Io aos ismaelitas, que, por sua vez, o levam para o Egito (37,28). 

 

O relato insinua que tudo tenha acontecido sem que os irmãos percebessem, pois estavam comendo e discutindo. Quando, porém, Rubem vai à cisterna e não vê mais José (37,29), alerta os irmãos (37,30) e todos combinam enganar o pai, fazendo-o crer que seu filho fora devorado por uma fera (37,31-35).

 

Um leitor mais crítico pode sem dúvida perguntar como os irmãos não perceberam a chegada dos midianitas nem se deram conta do movimento da venda de José aos ismaelitas. Mas o que, realmente, pode desorientar o leitor é o v. 36, em que os midianitas - e não os ismaelitas - vendem José no Egito. Gn 39,1 retoma 37,28b e atribui a ação, novamente, aos ismaelitas. Na verdade, é impossível conciliar de todo essas versões.”

 

As soluções apresentadas por Ska

 

Às fls. 82 e 83 da obra em exame, Ska apresenta a solução de alguns exegetas, baseadas na existência de duas versões paralelas da mesma história.

 

Na primeira, Rubem é o ator principal e decide salvar José (37,21-22). Convence os irmãos a não matar o "sonhador", mas jogá-lo numa cisterna (37,22), e assim se faz (37,23-24). Estando os irmãos afastados, chegam os midianitas, que, às escondidas, tiram José da cisterna e o levam para o Egito (37,28a). Rubem volta à cisterna para retirá-Io de lá e entregá-Io ao pai (cf. 37 ,22b), mas encontra a cisterna vazia. Assustado, dá o alarme aos outros (37,29-30). Em Gn 40,15, parece que José confirma essa versão, porque fala que fora raptado da terra dos hebreus.

 

Na segunda versão, somente Judá intervém. Enquanto estão comendo, os irmãos divisam uma caravana de ismaelitas a caminho do Egito (37,25). Judá propõe então vender José aos ismaelitas (37,26-27), com o que todos concordam, e o negócio é feito (37,28). Note‑se que o sujeito do verbo "vender" em 37,28 seria "os irmãos" e não "os midianitas". Em Gn 45,4-5, José confirma essa versão, dirigindo-se aos seus irmãos ("vós me vendestes").

Gn 37,36 conclui a "versão Rubem", na qual os midianitas vendem José no Egito, enquanto 39,1 se liga à "versão Judá".

 

Segundo Ska, há consenso entre os exegetas sobre a existência dessas duas versões. Entretanto, ressalta a dificuldade em se afirmar que o texto atual seja a combinação de duas fontes que existiram separadamente, numa fase anterior, ou que havia só uma versão completa e algum redator lhe ajuntou dados de outra versão.

 

A visão leiga deste estudo

 

Do ponto de vista leigo deste trabalho, não existem duas versões. Há uma única narração de um só acontecimento e pelo mesmo autor. Para defender esse ponto de vista, é necessário responder as dúvidas lançadas por Ska.

 

Warren W. Wiersbe, em sua obra  “Comentário Bíblico Expositivo”, registra à fl. 187 do Vol. 1, que “os termos ‘ismaelita’ e ‘midianita’ eram usados de modo intercambiável (Jz 8:22-24). Os mercadores são caracterizados dessa forma, pois muitos midianitas dedicavam-se ao comércio.” De fato, o texto de Juízes 8:22-26 mostra que os ismaelitas tinham afinidades com os midianitas e às vezes se identificavam com eles. Com esse esclarecimento, já se pode afastar boa parte das questões levantadas por Ska. Basta que no lugar de midianitas/ismaelitas utilizemos o termo “mercadores”. Assim, veremos que os irmãos de José, exceto Rubem, o venderam para esses mercadores que o venderam a Potifar, no Egito.

 

Ska admite a possibilidade desse entendimento, mas afirma que isso não é suficiente para resolver todo o problema: “Não basta, explicar, por exemplo, que ismaelitas e midianitas são o mesmo povo (cf. Jz 8,24). Dificuldades insuperáveis permanecem. Eis as mais importantes. Por que usar dois nomes diferentes no mesmo versículo (37:28) e em 37:36 e 39,1? Como solução, alguns exegetas afirmam que, no texto atual, os irmãos vendem José aos ismaelitas/midianitas. Mas, nesse caso, pode-se perguntar onde estava Rubem naquela hora. Se não estava com os outros irmãos, por que o texto nada diz a respeito? Se estava com eles quando o irmão foi vendido, por que foi procurá-lo (37,29)?”

 

Nesse exercício leigo, ousamos responder a essas questões de Jean Louis Ska, citadas à pg. 83 da obra em exame:

 

1) Por que usar dois nomes diferentes no mesmo versículo (37:28) e em 37:36 e 39,1?

Resposta: considerando que esses termos podiam ser utilizados indistintamente, até mesmo por fazer referência a um grupo misto de mercadores, não há dificuldades em se admitir essa composição em uma mesma narrativa.

 

2) Onde estava Rubem naquela hora?

Resposta: segundo Warren W. Wiersbe (Comentário Bíblico Expositivo, fl. 186), Rúben não estava presente quando os irmãos venderam José, tendo saído possivelmente para cuidar de algum problema com as ovelhas. Ou talvez tivesse se ausentado de propósito, a fim de que não suspeitassem de seu plano. Quando voltou à cisterna, ficou estarrecido ao ver que José não estava mais lá. Assim, correu de volta até o acampamento para descobrir o que havia acontecido. Sem dúvida, a atitude e as ações de Rúben deixaram claro para os outros irmãos que ele simpatizava com José, pois quando ouviu o que havia se passado, rasgou as roupas em sinal de lamentação.”

 

De fato, o texto bíblico deixa claro que Rúben não só foi contra o plano de seus irmãos para matar José, como também pretendia livrá-lo para, depois, devolvê-lo a seu pai. É possível notar que Rúben sugeriu lançar José na cisterna para, naquele momento, evitar que seus irmãos o matassem (Gn 37:21-22). Sua intenção era deixar José a salvo em um lugar onde ele pudesse, depois, escondido dos demais, resgatá-lo e encaminhá-lo de volta a sua casa. Com todos esses indicativos da preocupação de Rúben com a vida de José, não é difícil concluir que no momento em que os mercadores se aproximaram do local das negociações, junto à cisterna, ele não estava presente, ou por estar junto ao rebanho ou por estar no acampamento.

 

3) Se (Rúben) não estava com os outros irmãos, por que o texto nada diz a respeito? Se estava com eles quando o irmão foi vendido, por que foi procurá-lo (37,29)?

Resposta: como esclarecido na pergunta antecedente, Rúben não estava presente quando ocorreu a negociação da venda de José e, por isso, foi procurá-lo mais tarde e sozinho. O texto nada diz a respeito da ausência de Rúben, e nem era necessário, já que eram fartos os indicativos de que ele não estava presente.

 

Por fim, Ska volta a preferir as soluções que considera mais simples e mais econômica, afirmando o seguinte: “A hipótese das duas versões, cada uma com seu autor, é mais simples e mais "econômica", pois permite que se entenda o texto bíblico sem maiores problemas. A melhor solução, em exegese, é sempre a que explica mais dados com mais simplicidade. No caso de Gn 37, duas versões contraditórias e incompatíveis coexistem no texto e, por isso, dificilmente poderão ser atribuídas a um único autor.”

 

Entretanto, aquilo que Ska considera mais simples e mais econômico é a solução que compromete a integridade que se espera de Deus em relação aos homens. Isto é, Deus estaria permitindo que o instrumento de fé de inúmeros de seus seguidores, ao longo de centenas de anos, fosse uma colcha de retalhos montada por pessoas com propósitos escusos com o fim de iludir um povo específico e solucionar problemas políticos e sociais de determinadas épocas. Data vênia, essa só parece ser a solução mais simples e econômica para quem prefere se acomodar e seguir a filosofia humana ateísta em detrimento da fé na palavra de Deus.

 

7. Modo de conceber o relacionamento de YHWH com seu povo

 

No capítulo VII da obra em exame, ao tratar de diferenças entre a narrativa sacerdotal (P) e a lei de santidade (H), Ska afirma que a lei de santidade difere da narrativa sacerdotal no que diz respeito ao “modo de conceber o relacionamento de YHWH com seu povo. Em Ex 6,7 (P), YHWH liberta Israel para que seja seu povo e sua família. Em Lv 25,42; 26,13, Israel continua servo de YHWH, ou seja, reafirma-se a obediência a Deus.”

 

Isso, porém, não parece constituir qualquer incoerência, uma vez que o fato de Israel ser povo e família de Deus não afasta seu senhorio. Isto é, Deus é pai e Senhor, a quem todo filho deve respeito e obediência.

 

8. Ismael e Hagar

 

Ainda no capítulo VII da obra em exame, ao tratar da sincronia do pentateuco, Ska afirma que no estudo de Gn 12-25 é inútil buscar uma explicação satisfatória de um problema cronológico bem conhecido: “como Gn 21 apresenta Ismael como um recém-nascido, carregado pela mãe, se por outros textos ele teria então, aproximadamente, 17 anos? Em Gn 17:25, Ismael tem 13 anos. Um ano depois, nasceu Isaac (Gn 17:21; 18:14), que foi desmamado aos 3 anos de idade, mais ou menos (Gn 21,8; 2Mc 7,27b).

 

Apesar da afirmação de Ska, ousamos responder essas questões:

 

1) Como Gn 21 apresenta Ismael como um recém-nascido, carregado pela mãe, se por outros textos ele teria então, aproximadamente, 17 anos?

Resposta: certamente, o problema neste caso é devido à tradução utilizada.

A versão católica Teb traz o seguinte texto:

(Gn. 21:14) Abraão levantou-se  de manhã cedo, tomou pão e um odre d’água, que deu a Hagar. Acomodou a criança sobre o ombro dela, e a despachou. Ela foi vagueando no deserto de Beer-Sheba.

Na tradução Almeida Revista e Atualizada temos:

(Gênesis 21:14 RA) “ Levantou-se, pois, Abraão de madrugada, tomou pão e um odre de água, pô-los às costas de Agardeu-lhe o menino e a despediu. Ela saiu, andando errante pelo deserto de Berseba.”

Na Nova Versão Internacional temos:

(Gn. 21:14) Na manhã seguinte, Abraão pegou alguns pães e uma vasilha de couro cheia d’água, entregou-os a Hagar e, tendo os colocado nos ombros deladespediu-a com o menino. Ela se pôs a caminho e ficou vagando pelo deserto de Berseba.

Na tradução da Vulgata pelo Pe. Matos Soares temos:

(Gn 21:14) Abraão, pois, levantou-se de manhã, tomou pão e um odre de água, e pó‑lo às costas de Agar, e entregou-lhe o menino, e despediu-a. E ela, tendo partido, andava errando pelo deserto de Bersabéia.

Na tradução Almeida Revista e Corrigida temos:

(Gênesis 21:14 RC) “ Então, se levantou Abraão pela manhã, de madrugada, e tomou pão e um odre de água, e os deu a Agar, pondo-os sobre o seu ombro; também lhe deu o menino e despediu-a; e ela foi-se, andando errante no deserto de Berseba.”

 

Como se pode perceber, a indicação de que Abraão tenha colocado uma criança de colo no ombro, ou nas costas, de Agar só pode ser percebida na versão católica Teb. As demais traduções indicam que Abraão pôs sobre Hagar pão e água e não uma criança. Também, percebe-se que todos os textos, exceto a versão Teb, se referem a Ismael como “menino” e não como criança. No restante do capítulo 21, até a versão Teb apresenta Ismael como “menino” (“17 Deus ouviu a voz do menino”... e  “20 Deus esteve com o menino, que cresceu e habitou no deserto...”).

 

Afinal, qual tradução representa melhor a realidade do texto? Basta seguir a linha da coerência lógica para optarmos pela melhor tradução. No mesmo capítulo 21 vemos que Ismael já não era uma criança recém-nascida. No verso 9, Ismael é pego caçoando de Isaque. No verso 17 “Deus ouviu a voz do menino...” certamente porque Abraão o havia ensinado a orar. O fato das versões referirem a Ismael como menino não é razão para inferir que se tratava de um bebê. O próprio Jeremias afirmou que ainda era uma criança quando Deus o chamou, sendo ele já moço.

 

(Jeremias 1:6 RA) “Então, lhe disse eu: ah! SENHOR Deus! Eis que não sei falar, porque não passo de uma criança.”

 

Segundo a anotação de rodapé da bíblia Shedd, fl. 1058, “criança heb na’ar, que pode significar qualquer pessoa desde três meses até quarenta anos de idade. Jeremias tinha cerca de 24 anos quando iniciou seu ministério profético. A LXX traduz por ‘demasiado novo’”.

 

Com essas considerações, e sabendo-se que Ismael tinha aproximadamente 17 anos, não é nada razoável preferir a única versão que distorce o fio narrativo. Logo, o que Abraão colocou sobre os ombros de Hagar foram os recipientes com pão e água e não um bebê de colo.

 

Cabe observar, por fim, que Ska, ao dicorrer sobre algumas referências para a leitura do pentateuto, Capítulo IX, pág. 219, afirma que  “o ciclo de Abraão foi construído a partir de alguns relatos isolados e breves ciclos narrativos. Entre esses textos mais antigos, podemos, com relativa certeza, enumerar o ciclo de Abraão-Lot (Gn 13.18-19), a estada no Egito (12,10-20), as duas versões da expulsão de Agar (16,1-14 e 21,8- 20) e alguns dados tradicionais sobre a permanência de Abraão em Guerar (20,1-18; 21,22-34).”

 

Note-se que há referência a duas versões da expulsão de Agar. Essa afirmação, no entanto, não representa a realidade bíblica, uma vez que se trata de duas passagens distintas no tempo e não de duas versões de um mesmo fato. Em Gn 16:4-6 Hagar estava grávida quando fugiu da casa de Abraão, mas nos versos 7-9 um anjo vai ao encontro de Hagar e ordena-lhe que volte para casa, ao que ela obedeceu (Gn 16:15). O fato narrado em Gn 21:8-20, sobre a expulsão de Hagar, ocorreu cerca de 17 anos mais tarde. Logo, não se trata de duas versões de uma mesma passagem bíblica e sim da narrativa de dos fatos distintos.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Ressaltando que o presente trabalho foi elaborado por um leigo e sob influência cultual, avançou-se sobre boa parte das críticas oferecidas por Ska quanto às principais inconsistências, incoerências e problemas supostamente existentes no contexto legislativo, literário, narrativo e redacional do pentateuco, não sendo possível examinar todas elas.

 

Porém, o pouco que se examinou foi suficiente para por em dúvida as “claras divergências” apontadas por Ska, uma vez que, à exceção dos pares de animais que entraram na arca de Noé, tudo o mais não se apresentou assim tão claro e evidente. Ao contrário, verificou-se que a clareza a que Ska se refere nada mais é que um produto da influência da visão racionalista e filosófica a que está submergido.

 

Aqui importa por em relevo que a obra de Ska adotou o princípio da dúvida, tal qual fazem os filósofos. Esses mesmos que se ocupam com a tarefa de desmistificar a fé e afastar a existência de Deus, fazendo com que todos os seus seguidores sejam classificados como tolos. A obra de Ska chega a citar Spinoza, filósofo do século XVIII, como uma luz que iluminou o horizonte da fé cega. E, de fato, os estudos de Spinoza até hoje são utilizados, juntamente com outras obras filosóficas, para demonstrar que a bíblia não passa de um “conto de fadas”. No site ateu “Ateus.net”, por exemplo, o trabalho de Spinoza é muito valorizado para desacreditar a fé cristã, senão vejamos:

 

“Spinoza e Hobbes, no século XVIII, mostraram que o Pentateuco foi composto no século II a.C. graças ao que o sacerdote judeu havia aprendido no cativeiro babilônio, fato que aconteceu no século IV a.C. Em seguida, mostraram uma série de contradições quanto à cronologia. Em uma das fontes, apresentam Adão e Eva como tendo sido criados ao mesmo tempo, enquanto em outra informam que ela havia sido feita de uma costela de Adão. Em uma, o homem aparece antes dos outros animais, na outra os animais surgem primeiro.[3]

 

Surpreende o fato de um teólogo cristão empreender esforços em defesa do ateísmo. Jean Louis Ska chega a asseverar que repetições, tensões e contradições entre "discursos divinos" projetam sérios problemas para a crítica e que, do ponto de vista literário, é difícil atribuir todos esses textos à mesma pessoa, uma vez que qualquer autor sabe evitar essas dificuldades. Questão simples que deixa de ser considerada é que Deus é Deus. Se Deus é Deus, o que lhe impede de distribuir e compor suas orientações em quantos textos queira? Como diz Ska, “é bem mais simples pensar que os textos foram redigidos em várias épocas, correspondendo a circunstâncias e preocupações diferentes.” Mas a opção pela simplicidade de pensamento é temerosa, vez que, como já dito neste trabalho, admitir um texto forjado para satisfazer a anseios políticos em certos momentos da história de Israel é conferir razão a Maquiavel: “os fins justificam os meios”. Ou seja, restaria admitir que Deus usa pessoas dissimuladas e que guardam fins escusos (vasos imundos) para o representar perante uma imensidão de outras pessoas que seguirão essas palavras por toda a existência da humanidade. Melhor é confiar que Deus pode usar valos limpos para seus fins puros, justos e bons (2 Timóteo 2:21).

 

Ademais, admitir um pentateuco forjado por circunstâncias políticas é reconhecer que o pentateuco não é um texto inspirado pelo Espírito Santo de Deus, mas uma construção meramente humana, baseada em crenças, tradições, folclores criados ou copiados de outros povos etc. Aquilo que Ska considera mais simples e mais econômico é exatamente a solução que compromete a integridade que se espera de Deus em relação aos homens e que favorece o pensamento ateísta.

 

Do ponto de vista cultual, é pouco lógico acreditar que Deus permite que o instrumento de fé de inúmeros de seus seguidores, ao longo de centenas de anos, seja uma colcha de retalhos montada por pessoas com propósitos escusos e com o fim de iludir um povo específico para solucionar problemas políticos e sociais de determinadas épocas. Essa só parece ser a solução mais simples e econômica para quem prefere se acomodar e seguir a filosofia humana ateísta em detrimento da fé na palavra de Deus. É preciso sair em defesa dos mistérios de Deus, mesmo sabendo que os mistérios divinos frequentemente permanecem ocultos aos sábios e instruídos (Lucas 10:21; 1 Co 2:4-14)

 

Ao fim deste trabalho, é de se reconhecer a grande quantidade de opiniões quanto à constituição, formação e autoria do pentateuco. Em muitas questões há consenso e em outras nem sempre isso é possível. De fato, a obra de Jean Louis Ska amplia os horizontes sobre a quantidade de estudos já realizadas sobre esse tema. Foi possível perceber, entretanto, que a visão cultual da fé não se coaduna, em boa medida, com os estudos racionais propostos por Ska, uma vez que a visão cultual parte do princípio que “toda escritura é divinamente inspirada”, sendo o homem apenas um instrumento neste processo. Já a visão racionalista parte do pressuposto que o texto bíblico é um produto cultural e que Deus participa dessa elaboração de modo secundário, embora não se afaste sua influência.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

Ska, Jean Louis. Introdução à Leitura do Pentateuco. São Paulo: Loyola, 2003.

Wiersbe, Warren W. Comentário Bíblico Expositivo, Vol. 1.

Bíblia Shedd, anotações.

Ateus.net. -  Jesus Cristo nunca existiu - La Sagesse. Disponível em https://www.ateus.net/artigos/historia/jesus_cristo_nunca_existiu.html

 


[1] Por isso Moisés e Elias aparecem juntos na cena da Transfiguração de Jesus (Mt 17,3 par.). 37. Há muitas semelhanças entre este salmo e Js 1,1-8, como as expressões "meditar a lei dia e noite" e "ter êxito em tudo". É inegável o sabor deuteronomista dos dois textos.

[2] Os livros proféticos terminam com o anúncio da volta de Elias, identificado pelo Novo Testamento com João Batista (MI 3,23-24; cf. Lc 1,17; Mt 11,14; 17,12-13). Finalmente, a vinda de Jesus permitirá que se responda ao chamado de Ciro em 2Cr 36,23. Cf. Jo 2,10: Jesus é o novo templo (cf. 4,21-24); ele reunirá todos os filhos de Deus dispersos (Jo 10,16; 11,51-52).