A caverna de Platão

A caverna de Platão

Algumas considerações preliminares sobre a liberdade

Ser livre não é fácil. Muitos não sabem ser livres e acabam se perdendo em sua liberdade – é verdade.

Desde os tempos do Éden foi assim. Deus fez o homem para ser livre e não para viver aprisionado ou dominado por outro homem. O Senhor ordenou ao homem que dominasse sobre todo ser vivo (Gn 1:28), mas nunca disse para ele dominar sobre outro homem: sempre que um homem pretende dominar outro, temos aí constituídos os princípios de uma tirania.

Também, o Senhor não colocou o homem em uma prisão para evitar que ele pecasse. A árvore do conhecimento do bem e do mal estava ao alcance da mão de Adão e Eva. É claro que Deus poderia ter colocado essa árvore em um lugar inacessível ao homem para que ele nunca pecasse, mas Ele não fez isso. Antes, a colocou ao alcance de sua mão e apenas lhe disse, em outras palavras: “você é livre, mas eu não quero que você coma do fruto dessa árvore. Escolha por você mesmo: se obedecer a minha voz, viverá, mas caso decida fazer o que seus olhos e seus desejos acharem melhor, faça como quiser. Mas, lembre-se, você é responsável por seus atos -  assuma isso, pois você já sabe o que lhe acontecerá se escolher o caminho errado: certamente morrerás”. Assim, Deus designou o homem para a liberdade e para a responsabilidade.

Como eu disse, muitos não sabem ser livres, mas, ainda assim, essa é a melhor opção, porque essa é a vontade de Deus. Somente quando estamos livres somos capazes de realizar a vontade de Deus – Deus não usa pessoas em cativeiro[1]. Ora, se eu não peco por falta de opção, não posso me gloriar de minha santidade. Por exemplo: aquele que não adultera porque não tem oportunidade de adulterar não pode se gloriar de sua fidelidade. Mas, quando a oportunidade aparece e ele a rejeita, por amor à sua esposa e por amor a Deus, então ele pode dizer: venci a tentação!

O apóstolo Pedro entendeu que a vontade de Deus era que a igreja fosse livre e, por isso, teve que chamá-la à responsabilidade, senão vejamos:

“15 Porque assim é a vontade de Deus, que, pela prática do bem, façais emudecer a ignorância dos insensatos; 16 como livres que sois, não usando, todavia, a liberdade por pretexto da malícia, mas vivendo como servos de Deus.” (1 Pedro 2:15-16 RA)

Igualmente, o apóstolo Paulo, ao enfrentar aqueles que queriam impor a regra da circuncisão aos libertos da lei, foi duro com esses homens que se insurgiam contra a liberdade da graça, declarando que tais homens eram perturbadores e que incitavam a igreja à rebeldia. Mas, depois do discurso da liberdade, Paulo chamou a igreja à responsabilidade, conforme se vê a seguir:

“1 Para a liberdade foi que Cristo nos libertou. Permanecei, pois, firmes e não vos submetais, de novo, a jugo de escravidão. 2  Eu, Paulo, vos digo que, se vos deixardes circuncidar, Cristo de nada vos aproveitará. 3  De novo, testifico a todo homem que se deixa circuncidar que está obrigado a guardar toda a lei. 4  De Cristo vos desligastes, vós que procurais justificar-vos na lei; da graça decaístes. (...) 7  Vós corríeis bem; quem vos impediu de continuardes a obedecer à verdade? 8  Esta persuasão não vem daquele que vos chama. 9  Um pouco de fermento leveda toda a massa. 10  Confio de vós, no Senhor, que não alimentareis nenhum outro sentimento; mas aquele que vos perturba, seja ele quem for, sofrerá a condenação. 11  Eu, porém, irmãos, se ainda prego a circuncisão, por que continuo sendo perseguido? Logo, está desfeito o escândalo da cruz. 12  Tomara até se mutilassem os que vos incitam à rebeldia. 13 Porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade; porém não useis da liberdade para dar ocasião à carne; sede, antes, servos uns dos outros, pelo amor.” (Gálatas 5:1-13 RA)

Mas, quem não sabe ser livre, infelizmente, acaba voltando ao jugo da lei. Certa vez, soltei um pássaro que estava preso em uma gaiola na casa de um tio meu. Dois dias depois ele estava de volta: ele não sabia ser livre, pois desde seu nascimento sempre viveu na gaiola. A liberdade o mataria, pois ele era fraco e indefeso. Não sabia sequer conquistar seu alimento sozinho. Entre voar livremente, desfrutar do sol, das árvores, dos rios e ajuntar-se a outros grupos de aves, mas com a responsabilidade de se defender e de ter de caçar sua própria comida, ele preferiu a gaiola. Nela, ele não gozaria dos benefícios da liberdade, mas se sentia seguro e bem alimentado: tratava-se de um preso feliz, comendo sua ração diária, sempre igual, na mesma quantidade e na mesma hora, porque ele não queria arcar com o preço da liberdade. Se Jesus pensasse assim, estaríamos perdidos. Mas, ele saiu do conforto de seu trono e pagou o preço da nossa liberdade.

Foi pensando assim que eu percebi que apenas os determinados e os destemidos podem enfrentar, com sucesso, esse caminho para fora da caverna – o caminho da liberdade. Mas, independentemente da escolha de cada um, todos devem, pelo menos, saber que há luz do lado de fora. Depois, eles são livres para escolher: se preferirem, poderão ficar onde estão e não se arriscar.

Cada um conhece suas próprias fraquezas, medos e comodismo. Entretanto, conhecendo as opções disponíveis, o homem torna-se dono de seu próprio destino. Isso é inevitável e foi Deus quem nos trouxe o conhecimento da verdade e nos colocou na condição de livre arbítrio, para que jamais venhamos a dizer que não sabíamos quais as opções que tínhamos à nossa frente.

De volta à caverna

Hoje, há mais de 10 anos da minha saída de uma caverna, volto mais uma vez a dizer que há luz do lado de fora.

Pois bem, vou começar fazendo um breve comentário sobre quem foi Platão e depois vou fazer um resumo simplificado do texto de Platão para, ao final, mostrar a significação das palavras dessa alegoria dentro do contexto de minha experiência pessoal.

A partir de agora, começo minha descida à caverna.

Sobre Platão

Platão integra o período clássico da Filosofia (Séc. V - IV a.C), inaugurado pelos ensinamentos de Sócrates, o qual, assim como Jesus, não deixou nada escrito. Conhecemos Sócrates pelos escritos de Platão do mesmo modo que conhecemos Jesus pelos escritos dos apóstolos. Sócrates acreditava que a palavra viva era a palavra falada e, de modo semelhante, Jesus, mesmo sem ter escrito uma só linha, afirmou que as suas palavras não passariam (Mt. 24:35).

Platão, por sua vez, afirmou que "conhecer" é conhecer a essência das coisas. Segundo ele, a ciência moderna admite o uso dos sentidos para a observação, mas isso não é seguro, pois os sentidos nos enganam, ou seja, nem sempre o que parece ser é. Por isso, Platão defendeu que o homem deve usar a razão para conhecer a verdade das coisas. Existe um mundo inteligível e um mundo sensível. E, para Platão, o verdadeiro mundo é o inteligível, pois o mundo sensível (físico) é influenciado pelos sentidos humanos, que nos enganam, pois a matéria está em movimento.

A alegoria da caverna de Platão

Para aqueles que já leram o texto original de Platão e o acharam de difícil compreensão, vou fazer um resumo com a essência de sua alegoria da caverna e depois vou compará-la à realidade a que me referi em meu testemunho.

Vamos imaginar um grupo de pessoas habitando no interior de uma caverna subterrânea. Lá embaixo estão todos acorrentados pelo pescoço e pés, de costas para a entrada da caverna e de frente para a parede que está ao fundo da caverna. Tudo o que podem ver é a parede da caverna. Desde seu nascimento, geração após geração, seres humanos ali vivem acorrentados, sem poder mover a cabeça para a entrada, nem se locomover, forçados a olhar apenas a parede do fundo, e sem nunca terem visto o mundo exterior nem a luz do Sol.

Atrás dessas pessoas há um muro alto que fica entre elas e a entrada da caverna. Ao longo desse muro muitas outras pessoas passam conversando e carregando nos ombros esculturas sob a forma de homens, mulheres e animais, que se elevam para além da borda do muro. A iluminação que vem de uma fogueira queimando atrás desse muro se projeta nos objetos carregados pelos homens e lança sombras em movimento na parede ao fundo da caverna. Os prisioneiros julgam que essas sombras são as próprias coisas externas, e que os artefatos projetados são os seres vivos que se movem e que falam.

 Assim, a única coisa que as pessoas da caverna podem ver é este “teatro de sombras”. E como estão ali desde que nasceram, acham que as sombras que veem são tudo o que existe.

Agora, vamos imaginar que um desses habitantes da caverna consiga se libertar dos grilhões que o prendem e queira saber de onde vêm aquelas sombras projetadas na parede. Quando ele chega no muro e se ergue para ver as figuras que se elevam para além da borda do muro, ele fica com sua visão completamente ofuscada por aquele brilho inesperado, ao qual a sua visão não está acostumada. A luz é tão intensa que ele não consegue enxergar nada. Mas, insistindo em olhar, pouco depois pode ver a precisão dos contornos das figuras, de que ele até então só via as sombras. Se ele conseguir escalar o muro e passar pelo fogo para poder sair da caverna, terá mais dificuldade ainda para enxergar devido à abundância de luz que há do lado de fora da caverna. Chegando lá, depois de manter as mãos sobre olhos por algum tempo, começará a abri-los, aos poucos, e com o tempo poderá contemplar a beleza que sempre esteve ali, perto do local onde ele sempre viveu.

Ele fica encantado com tudo o que vê. Deslumbra-se, tem a felicidade de, finalmente, ver as próprias coisas, descobrindo que, em sua prisão, vira apenas sombras. Pela primeira vez ele vê cores e contornos precisos. Ele vê animais e flores de verdade e compreende que tudo o que ele conhecia antes era apenas uma silueta que não podia servir para dar a compreensão da realidade. Também, ele está feliz por poder se mover livremente pela natureza, desfrutando da vida que acabara de conquistar.

Deseja ficar longe da caverna, mas as outras pessoas que ainda continuam lá dentro da caverna não lhe saem da cabeça. Ele até pensa em notificar os outros da realidade exterior, mas se lembra da subida íngreme e penosa. Também, lembra-se da luz ofuscante e considera que o retorno também será trabalhoso, pois deverá enfrentar novamente as trevas, o que é muito pior do que se habituar à luz.

Mesmo assim, ele decide regressar. De volta à caverna, o ex-prisioneiro será desajeitado, não saberá mover-se nem falar de modo compreensível para os outros. Ele tenta, com muito jeito, explicar a todos que as sombras na parede não passam de trêmulas imitações da realidade... mas, quem irá acreditar nele?

Os habitantes da caverna se aproveitam da sua dificuldade de explicar o que viu e o ridicularizam dizendo que perdeu o juízo e que, por isso, é loucura tentar fazer o mesmo que ele fez. As pessoas apontam para a parede da caverna e dizem que aquilo que veem é tudo o que existe; é a única verdade que existe; é a realidade.

Por fim, acabam atentando contra a vida daquele que retornou para lhes dizer um monte de "mentiras".

A aplicação da alegoria no contexto do meu testemunho pessoal

Por meio da referida alegoria relatada por Platão, comparada a uma parábola de Jesus, nos serve como ilustração de uma realidade. A partir dela, podemos refletir um pouco acerca do que entendemos ser a verdade do evangelho que sustenta a nossa fé.

Pensando nisso, será que nossas verdades são simplesmente “sombras” que se encontram à nossa frente? Será que nossas verdades condizem com verdadeiro evangelho de Jesus? Ou será que trocamos Jesus por sua sombra e a sua verdade por outra que satisfaça apenas nossa religiosidade? Será que não estamos presos dentro da caverna, com grilhões nos pescoços e nos pés, sem poder nos mover e acreditando que Jesus é Davi, Moisés, Elias, Samuel ou qualquer outro tipo que o possa representar? Será que não estamos presos dentro das muralhas de nossos próprios sentidos, percepções, conceitos e preconceitos?

A minha experiência cristã tem me ensinado algumas coisas que eu gostaria de compartilhar com você, que está onde eu estava e que parou um instante para ouvir o que eu tenho a dizer sobre a luz que está do lado de fora da caverna.

Eu não concordo com Platão quanto ao conhecimento da verdade exclusivamente por meio da razão. Creio que conhecer a verdade, para nós que cremos na palavra de Deus, significa conhecer Jesus, que disse que ser a verdade. Por isso, nesse particular, deixo Platão e fico com Jesus. Confio que Ele nos ensina o exato caminho em que devemos andar para a preservação da integridade do nosso espírito, alma e corpo (1Ts 5:23).

Aprendi, a duras penas, que a base confiável para o desenvolvimento da minha fé cristã é a palavra de Jesus. Tudo que existe antes Dele é sombra. Tudo o que vem depois dele não pode ultrapassar seus ensinamentos. Fora de Jesus, só há sombras. Jesus é o real, o princípio e fim de todas as coisas (Ap 22:13). Jesus é o messias anunciado pelos profetas de Deus. Ele é a consumação de todo um ritual representado durante centenas de anos por meio da morte de animais. Ele é a figura real de tantas e tantas simbologias e figuras do passado. Ele é a verdade!

“13 E a vós outros, que estáveis mortos pelas vossas transgressões e pela incircuncisão da vossa carne, vos deu vida juntamente com ele [Jesus], perdoando todos os nossos delitos; 14  tendo cancelado o escrito de dívida, que era contra nós e que constava de ordenanças, o qual nos era prejudicial, removeu- o inteiramente, encravando-o na cruz; 15  e, despojando os principados e as potestades, publicamente os expôs ao desprezo, triunfando deles na cruz. 16 Ninguém, pois, vos julgue por causa de comida e bebida, ou dia de festa, ou lua nova, ou sábados, 17  porque tudo isso tem sido sombra das coisas que haviam de vir; porém o corpo é de Cristo.” (Colossenses 2:13-17 RA)

“4  Ora, se ele estivesse na terra, nem mesmo sacerdote seria, visto existirem aqueles que oferecem os dons segundo a lei, 5  os quais ministram em figura e sombra das coisas celestes, assim como foi Moisés divinamente instruído, quando estava para construir o tabernáculo; pois diz ele: Vê que faças todas as coisas de acordo com o modelo que te foi mostrado no monte.” (Hebreus 8:4-5 RA)

“Ora, visto que a lei tem sombra dos bens vindouros, não a imagem real das coisas, nunca jamais pode tornar perfeitos os ofertantes, com os mesmos sacrifícios que, ano após ano, perpetuamente, eles oferecem.” (Hebreus 10:1 RA)

É verdade que muitos cristãos ainda vivem pela sombra da lei de Moisés e não pela realidade da graça de Jesus. Outros, utilizam os personagens da velha aliança para formar a doutrina de sua religião e não percebem que a realidade doutrinária para a igreja não pode ser fundamentada pelo tempo das sombras do Velho Testamento, uma vez que temos hoje explicitados no Novo Testamento a vida, a obra, o testemunho e os ensinamentos diretos de Jesus e dos apóstolos que nos deixaram diretrizes bem claras em suas cartas à Igreja. Neste caso, as sombras do Velho Testamento não podem se sobrepor à realidade da Nova Aliança quando houver qualquer conflito aparente entre seus preceitos. 

Importante ressaltar que o fundamento da igreja está na pedra angular (Jesus) e na doutrina deixada pelos apóstolos.

Por  exemplo, há quem diga que Davi é um tipo de Jesus “naquilo que ele não pecou”. Concordamos, mas é preciso ter cuidado com isso. O risco é descambar para uma inversão de ordem e de valores, substituindo a sombra pelo real. 

Muita atenção! Se algum ato de Davi apenas se parece com os de Jesus, ainda assim é melhor ficar com os atos de Jesus. Por que não? Se são iguais, ou parecidos, por que não basear a doutrina da igreja de Jesus no próprio Jesus? Por que preferir a sombra? Por que desenvolver toda uma doutrina com base em Davi, se eu conheço Jesus, o real?

Pois bem, eu vivi por muitos anos acreditando que a obra de Deus era a “Obra de Davi”. Desse modo, sem perceber, eu estava fundamentando minha fé em Davi, enaltecendo alguns atos que Jesus repudiaria, com certeza. Fiz muita coisa que, no fundo, expressava a falta de amor por meus irmãos em Cristo: desprezo, palavras pejorativas e insinuações maldosas sobre o trabalho de outros grupos evangélicos. Sim, os grilhões não permitiam que eu virasse o meu pescoço e movesse os meus pés em outra direção. Para mim, aquilo era o certo, a verdade, a realidade, razão de minha existência. Eu acreditava, sinceramente, que tudo aquilo que eu fazia era a vontade de Deus, pois eu estava amparado pela “Obra de Davi”, que seria a “Obra do Espírito Santo de Deus”.

Mas, hoje sei que é impossível enxergar Jesus em sua plenitude real quando estamos fixando nossos olhos apenas em sua sombra. As formas são parecidas e até podemos dizer que conhecemos os contornos de Jesus, mas o fato é que eu estava distante de praticar os seus ensinamentos enquanto eu estava reproduzindo alguns atos de Davi. Na verdade, Jesus para mim era o mesmo que o cordeiro para o judeu no tempo do sacrifício da lei: uma sombra.

Jesus viveu aproximadamente mil anos depois de Davi e isso já explica muito sobre a diferença das atitudes de um de do outro. Davi era um guerreiro e conquistou os termos de Israel à base de muito sangue inimigo derramado, senão vejamos:

“1 Depois disto, feriu Davi os filisteus e os humilhou; tomou a Gate e suas aldeias das mãos dos filisteus. 2  Também derrotou os moabitas, e assim ficaram por servos de Davi e lhe pagavam tributo. 3  Também Hadadezer, rei de Zoba, foi derrotado por Davi, até Hamate, quando aquele foi restabelecer o seu domínio sobre o rio Eufrates. 4  Tomou-lhe Davi mil carros, sete mil cavaleiros e vinte mil homens de pé; Davi jarretou [alejou] a todos os cavalos dos carros, menos para cem deles. 5  Vieram os siros de Damasco a socorrer a Hadadezer, rei de Zoba; porém Davi matou dos siros vinte e dois mil homens.” (1 Crônicas 18:1-5 RA)

As conquistas de Davi podiam ser necessárias e aquilo até estava de acordo com a vontade de Deus para aquele tempo, ou seja, nisso ele não pecou. Mas, neste caso, seria esse um comportamento aplicável tipologicamente a Jesus?

Parece incrível, mas os ensinamentos diretos da boca de Jesus algumas vezes têm sido desprezados e têm dado lugar aos ensinamentos da Obra de Davi. Há quem entenda que para estabelecer seus domínios podem sair matando todos os que não estiverem se rendendo a eles, assim como fazia Davi. Matam, humilham, descartam, cobram tributos (dízimos) e escravizam (controle mental) e ainda acreditam que estão em perfeita sintonia com a vontade de Deus.

Esquecem-se que a vinda de Jesus ao mundo provocou uma verdadeira revolução de conceitos, práticas, doutrinas etc. Em boa medida há um rompimento com os valores do passado. Quando a terra tremeu e as rochas fenderam em sua morte, Deus estava nos mostrando como o mundo seria abalado após Jesus e que as estruturas mais estáveis desta terra seriam atingidas. Nada mais seria como antes. O filho de Deus rompeu com a lei ao consumá-la, aniquilou as regras criadas pelos fariseus, alterou a religião dos judeus fazendo cessar os sacrifícios de animais, mas o mais importante: trouxe princípios e valores eternos para que dali por diante os cumpríssemos, a despeito de tudo aquilo que já havia sido ensinado antes, senão vejamos:

“20  Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus. 21 Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás; e: Quem matar estará sujeito a julgamento. 22  Eu, porém, vos digo que todo aquele que sem motivo se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento; e quem proferir um insulto a seu irmão estará sujeito a julgamento do tribunal; e quem lhe chamar: Tolo, estará sujeito ao inferno de fogo. 23  Se, pois, ao trazeres ao altar a tua oferta, ali te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, 24  deixa perante o altar a tua oferta, vai primeiro reconciliar-te com teu irmão; e, então, voltando, faze a tua oferta.  (Mateus 5:20... leia em sua bíblia o texto completo até o verso 48)

Nenhum cristão em sã consciência, enxergando claramente a Jesus (o real e não a uma sombra tipológica) pode se sentir confortável em uma religião firmada nos atos de Davi, especialmente quanto aos incompatíveis com os ensinamentos do Mestre. Jesus não era um guerreiro e nunca mandou executar ninguém, nem mesmo seus inimigos (fariseus e escribas e soldados romanos) ou aqueles que não o aceitavam. Ao contrário, Jesus deu um exemplo bem diferente:

“51 E aconteceu que, ao se completarem os dias em que devia ele ser assunto ao céu, manifestou, no semblante, a intrépida resolução de ir para Jerusalém 52  e enviou mensageiros que o antecedessem. Indo eles, entraram numa aldeia de samaritanos para lhe preparar pousada. 53  Mas não o receberam, porque o aspecto dele era de quem, decisivamente, ia para Jerusalém. 54  Vendo isto, os discípulos Tiago e João perguntaram: Senhor, queres que mandemos descer fogo do céu para os consumir? 55  Jesus, porém, voltando-se os repreendeu e disse: Vós não sabeis de que espírito sois. 56  Pois o Filho do Homem não veio para destruir as almas dos homens, mas para salvá-las. E seguiram para outra aldeia.” (Lucas 9:51-56 RA)

Se executar inimigos e entrar em guerra era algo razoável no tempo de Davi, Jesus alterou radicalmente esse comportamento. Jesus mandou Pedro guardar a espada, senão vejamos:

“51 E eis que um dos que estavam com Jesus, estendendo a mão, sacou da espada e, golpeando o servo do sumo sacerdote, cortou-lhe a orelha. 52  Então, Jesus lhe disse: Embainha a tua espada; pois todos os que lançam mão da espada à espada perecerão. 53  Acaso, pensas que não posso rogar a meu Pai, e ele me mandaria neste momento mais de doze legiões de anjos?” (Mateus 26:51-53 RA)

Davi orientou Salomão à vingança, deixando ordem para que Joabe fosse executado na primeira oportunidade. Davi não se lembrou que um dia Joabe foi seu grande companheiro de batalhas, seu antigo general, que por ele lutou inúmeras vezes. Davi, naquele momento, só se lembrou que Joabe falhou e, por isso, não haveria para ele perdão.

“5 Também tu sabes o que me fez Joabe, filho de Zeruia, e o que fez aos dois comandantes do exército de Israel, a Abner, filho de Ner, e a Amasa, filho de Jéter, os quais matou, e, em tempo de paz, vingou o sangue derramado em guerra, manchando com ele o cinto que trazia nos lombos e as sandálias nos pés. 6  Faze, pois, segundo a tua sabedoria e não permitas que suas cãs desçam à sepultura em paz.” (1 Reis 2:5-6 RA)

É claro que tudo isso estava dentro de um propósito compatível com a época em que Davi viveu. Por isso, encontraremos várias explicações razoáveis para tal atitude de Davi. Mas, é bom lembrar que tais fatos somente podem ser compreendidos naquele contexto. Hoje, tal comportamento não pode servir de parâmetro para a igreja de Jesus, pois o nosso mestre nos deixou nova instrução. Jesus, que é a imagem real do evangelho da salvação, nos ensinou a resolver os problemas com nossos inimigos de um modo bem diferente:

“38 Ouvistes que foi dito: Olho por olho, dente por dente. 39 Eu, porém, vos digo: não resistais ao perverso; mas, a qualquer que te ferir na face direita, volta-lhe também a outra; 40  e, ao que quer demandar contigo e tirar-te a túnica, deixa-lhe também a capa. 41  Se alguém te obrigar a andar uma milha, vai com ele duas. 42  Dá a quem te pede e não voltes as costas ao que deseja que lhe emprestes. 43 ¶ Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. 44  Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem; 45  para que vos torneis filhos do vosso Pai celeste, porque ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons e vir chuvas sobre justos e injustos. 46  Porque, se amardes os que vos amam, que recompensa tendes? Não fazem os publicanos também o mesmo? 47  E, se saudardes somente os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem os gentios também o mesmo? 48  Portanto, sede vós perfeitos como perfeito é o vosso Pai celeste.” (Mateus 5:38-48 RA)

Com o olhar nos princípios e ensinamentos de Jesus, entendemos que nossa missão é conciliadora. Não é razoável ensinar os membros da igreja a virarem as costas aos seus “desafetos”. Se isso é aceitável na obra de Davi, não é na obra de Jesus.

Os discípulos de Jesus, certamente, ficarão desconfortáveis com todo ensinamento que os induza a amar e a respeitar somente os membros de sua denominação. Também, ficarão perplexos diante da ausência de perdão diante dos erros das pessoas. Ainda que seja admissível a exclusão de um membro por sua contumácia no pecar, será sempre possível sua reintegração à comunhão da igreja ou da participação dos seus serviços porque o perdão faz parte da essência da obra de Jesus quando há arrependimento, embora no tempo de Davi as coisas funcionassem de modo diverso.

 “21 Então, Pedro, aproximando-se, lhe perguntou: Senhor, até quantas vezes meu irmão pecará contra mim, que eu lhe perdoe? Até sete vezes? 22  Respondeu-lhe Jesus: Não te digo que até sete vezes, mas até setenta vezes sete.” (Mateus 18:21-22 RA)

Veja, ainda, que o apóstolo Paulo ensinou na mesma linha de Jesus, dizendo:

“16 Tende o mesmo sentimento uns para com os outros; em lugar de serdes orgulhosos, condescendei com o que é humilde; não sejais sábios aos vossos próprios olhos. 17  Não torneis a ninguém mal por mal; esforçai-vos por fazer o bem perante todos os homens; 18  se possível, quanto depender de vós, tende paz com todos os homens; 19  não vos vingueis a vós mesmos, amados, mas dai lugar à ira; porque está escrito: A mim me pertence a vingança; eu é que retribuirei, diz o Senhor. 20  Pelo contrário, se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber; porque, fazendo isto, amontoarás brasas vivas sobre a sua cabeça. 21  Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o bem.” (Romanos 12:16-21 RA)

Se alguém defende a obra de Davi hoje deve estar preparado para ser tratado como Joabe amanhã, caso falhe.

Enfim, somos livres para escolher onde queremos estar e o que faremos enquanto cristãos, mas é importante ressaltar: somos inteiramente responsáveis pelas nossas escolhas e um dia estaremos diante do Pai onde nossas obras serão avaliadas pelo justo juiz. Assim, hoje devemos nos lembrar que Jesus, o filho do Deus vivo foi quem deu sua vida por nós e, em alguns casos, ele é bem diferente de Davi, de modo que devemos ter cuidado para não reproduzirmos as obras das sombras, especialmente quando estamos conscientes dos ensinamentos de Jesus, o real.

HÁ LUZ DO LADO DE FORA!

Brasília, 26 de junho de 2016.



[2] PLATÃO.  A República.  1ª edição.  São Paulo: Martin Claret, 2000, p. 210-212.