Carta 044

09/06/2015 19:18

Em 8/6/2015, Leila escreveu, via whatsapp:

Pr. Sólon, paz e bênção! Continuo na oração por ti, Amado.

Queria comentar algo com o Sr. Quero lhe perguntar uma coisa: vi uns comentários sobre a parada gay.  Alguns irmãos lamentando e dizendo que como somos evangélicos, devemos perdoar e dar a outra face. Eles dizem que é inevitável e não entram em debates.

Minha pergunta é a seguinte: de acordo com a identidade cristã genuína, até onde damos a outra face e até onde defendemos a fé que um dia nos foi dada?

Queria te ouvir sobre isso, pelo fato de o Sr. ser do "direito" e ser sério na ortodoxia.

Resposta em 8/6/2015, via whatsapp:

Paz Leila! Confesso que não tenho acompanhado os acontecimentos a que você se referiu. Por isso não sei o que está se passando no debate sobre a parada gay. Quem foi ofendido ou agredido?

Em 8/6/2015, Leila escreveu, via whatsapp:

Bom, na verdade, são comentários gerais no meio evangélico. Houve uma divulgação de imagens mais agressivas contendo Jesus gay, Jesus numa Cruz dupla beijando na boca de outro Jesus q também estava lá... pessoas introduzindo a Cruz no ânus.... aquelas cenas agressivas radicais.....

Aí vem os comentários do público geral.

O que me chamou atenção foi o posicionamento de alguns evangélicos (pessoas comuns) dizendo que devemos perdoar e dar a outra face, pois pelo fato de sermos evangélicos, devemos nos calar (em atitude de resignaçao)

As opinioes populares dos evangélicos me deixaram meio assustadas pois não é possível ver uma identidade protestante, sabe?

Aí vem minha pergunta, neste contexto, como um cristão genuíno deve se  posicionar publicamente? Resignaçao simples ou oposição ao pecado? 

Até onde devemos dar a outra face e até onde defender a fé?

Como minha posição é mais de oposição, me deu um sentimento de "onde é que estamos errando em ensinar o povo a defender a fé?" Como desenhar esta linha tênue entre resignaçao e oposição....

Consegui ser clara?

Resposta, em 8/6/2015, via whatsapp:

Ok, entendi. Vou mandar uma resposta no seu e-mail em breve, pois acho difícil digitar no whatsapp...

Resposta, em 9/6/2015, via e-mail:

Prezada irmã Leila, que a paz do Senhor Jesus seja com toda a sua casa.

Bom, sobre a questão que você levantou, confesso que estava bastante alheio aos acontecimentos dos últimos dias, embora possua conta no facebook e tenha visto algumas postagens a respeito, mas sem perder meu tempo lendo os textos que as acompanhavam.

Em atenção à mensagem que você me dirigiu, procurei observar mais detidamente os fatos.

Assisti um vídeo do Pr. Marcos Feliciano conclamando as lideranças evangélicas a se manifestarem contra as provocações de alguns participantes da “Parada Gay” que aviltavam símbolos da fé cristã. Nesse vídeo ele passava repetidamente várias imagens para chocar os cristãos e causar-lhes revolta. Também, vi dois vídeos do Pr. Silas Malafaia. O primeiro, para despertar a reação evangélica contra o Boticário e, o segundo, para relacionar a marca do perfume ao Partido dos Trabalhadores e para avisar que continuaria a insuflar os evangélicos contra todas as empresas, que utilizassem a “grande mídia” para apoiar o movimento homossexual. Por último, vi algumas fotos de evangélicos com placas dizendo: "Somos evangélicos. Malafaia e Feliciano não nos representam" e pedindo perdão aos homossexuais pelo modo como têm sido tratados pela igreja evangélica.

Sei que a reflexão que eu faço pode não ser convencional, por isso, ressalto que não estou fazendo um estudo bíblico e nem me aprofundando em cada ponto abordado. Apenas apresentarei algumas de minhas percepções.

Preciso esclarecer, também, que, embora eu reconheça a cruz e a crucificação de Jesus como representação de um fato bíblico histórico, ligado ao cristianismo, pessoalmente não tenho a cruz como símbolo do cristianismo que sigo, onde a cruz é apenas uma representação espiritual sobre a necessidade de eu oferecer a minha carne (paixões, desejos e concupiscências) ao sacrifício diário, assim como o próprio filho de Deus fez como exemplo: “Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, dia a dia tome a sua cruz e siga-me” (Lc 9:23).

Para aceitar a obra redentora de Jesus na cruz, não fui ensinado nem nos evangelhos e nem nas epístolas a andar com um crucifixo pendurado no pescoço ou com uma cruz posta dentro ou fora da igreja. Penso que isso é idolatria, materialização da fé, o que não é compatível com os ensinamentos de Cristo. Aliás, até o século IV da Igreja, a cruz nem mesmo era um símbolo cristão. Como você bem sabe, esse símbolo foi introduzido pelo Imperador Romano Constantino que, por meio de uma história duvidosa (sonho com uma cruz e vitória sobre Magêncio na Batalha da Ponte Mílvio, em 28 de outubro de 312), tornou-se cristão e promoveu a cristianização forçada do Estado, dos seus súditos e, por via sorrateira, a paganização da igreja, inclusive com a introdução de festas e símbolos pagãos. Você bem sabe a que eu estou me referindo.

Nesse ponto, sei que não sou convencional, mas prefiro deixar que a Igreja católica e todos os evangélicos que abraçaram a fé repleta de símbolos materiais defendam esses seus símbolos. Quando o bispo da Igreja Universal chutou a santa, por exemplo, eu não me senti ofendido, porque aquele não era um símbolo da minha fé, embora eu compreenda o sentimento de repúdio dos católicos.

No que diz respeito à guerra que se instalou entre evangélicos e homossexuais, como sou um pouco mais velho e presenciei o desenrolar dessa história não me deixo levar pelos apelos daqueles que provocaram essa confusão e, agora, querem me envolver. Lamento muito pelo povo evangélico que virou massa de manobra, mas em minha humilde opinião, estão na contramão do evangelho de Cristo.

Primeiramente, sobre pedir perdão, em nome dos evangélicos, aos homossexuais, acho estranha essa atitude, uma vez que pedido de perdão é uma atitude personalíssima. Eu até posso pedir perdão por outra pessoa (que não se arrependeu do que fez), mas que valor tem isso? Parece-me uma arrogante presunção.   

Outra coisa, no tempo de Jesus, Roma era um grande centro de promiscuidade de todo gênero, a exemplo das casas de banho romanas. Inclusive, a prática homossexual na Roma Antiga era corriqueira. Ao que parece, as atitudes e a aceitação deste fato eram bastante comuns. Sobre o assunto, há obras literárias, poemas, gravuras e comentários sobre a condição sexual de todos os tipos de personagens, incluindo imperadores solteiros e casados.

Nesse contexto, boa parte das leis, evidentemente, não estavam firmadas nos princípios de Deus. A despeito disso, não temos notícias de que Jesus tenha incitado seus discípulos contra o parlamento romano, para forçar a moralização do Império por meio da lei dos homens. Perceba que essa história sobre territorialismo de potestades malignas, baseadas nas escolhas morais das nações, é uma novidade que pegou na igreja evangélica tradicional advinda dos ensinamentos neopentecostais. Lembro-me que a primeira vez que tive acesso a esse tipo de “literatura cristã” (?) foi por meio do livro “Oração de Guerra”, de C. Peter Wagner. Salvo engano, fiz essa leitura há, aproximadamente, 12 anos.

O fato é que essa novidade viral se espalhou e hoje os evangélicos estão convictos de que uma lei de organização político-social definirá se a nação será abençoada ou amaldiçoada. Devo estar vivendo outro evangelho, pois ainda penso que a solução é preservarmos a moral cristã dentro da igreja para que tenhamos um testemunho verdadeiro de Cristo, capaz de atrair aqueles que desejem algo melhor para suas vidas.

“Porque a nossa glória é esta: o testemunho da nossa consciência, de que, com santidade e sinceridade de Deus, não com sabedoria humana, mas, na graça divina, temos vivido no mundo e mais especialmente para convosco.” (2 Coríntios 1:12 RA)

“44 Todos os que creram estavam juntos e tinham tudo em comum. 45 Vendiam as suas propriedades e bens, distribuindo o produto entre todos, à medida que alguém tinha necessidade. 46 Diariamente perseveravam unânimes no templo, partiam pão de casa em casa e tomavam as suas refeições com alegria e singeleza de coração, 47 louvando a Deus e contando com a simpatia de todo o povo. Enquanto isso, acrescentava-lhes o Senhor, dia a dia, os que iam sendo salvos.” (Atos 2:44-47 RA)

 Seja como for, parece-me que Jesus é um bom exemplo a seguir, como ponto de partida. Nosso mestre apenas anunciou o projeto da salvação ao mesmo tempo em que apresentou os princípios morais e espirituais de Deus em oposição aos propósitos de Satanás. Pelo que consegui entender lendo a bíblia, os ensinos de Jesus foram dirigidos àqueles que se aproximavam dele e queriam saber o que ele tinha a dizer. Os que estavam bem e queriam continuar a viver nos padrões romanos não foram incomodados e nenhuma lei romana foi alterada para garantir direitos morais aos judeus que estavam sob o jugo romano.

Vale lembrar que no direito romano os escravos eram considerados objetos e não pessoas. Como coisas, eles não constituíam família, não exerciam o direito de propriedade, não deixavam herança e não compareciam em juízo. Se fossem agredidos ou feridos, quem podia reagir seria o seu senhor, se assim o desejasse, como o faria em relação a um seu objeto que alguém danificasse.

Semelhantemente, no direito romano, a mulher não era “sujeito de direito”. Sua condição pessoal, sua relação com seus pais ou com seu marido igualava-se à condição de um objeto de posse, uma vez que seu pai, sogro ou o marido eram chefes todo-poderosos. A despeito do direito e da sociedade romana ter a mulher como um objeto, Jesus tratou as mulheres como pessoas, acolhendo-as, valorizando-as, dando-lhes atenção em um tempo onde os rabinos e mestres da lei não lhes davam a menor importância, negando-lhes, inclusive, a instrução nas escolas/sinagogas.

Veja, portanto, que a grande revolução provocada por Jesus, inclusive no comportamento humano, operou-se por suas palavras e exemplos e não por meio de influências sobre o governo ou sobre o parlamento romano. Todas as vezes que eu me lembro disso, admiro ainda mais o meu mestre.

Mas, quando olho para as lideranças evangélicas do nosso tempo, fico confuso. Não consigo imaginar Jesus ou Paulo falando com o ar de deboche que vejo no Pr. Malafaia, o qual já vi se referindo aos que não concordam com ele (crentes ou não) como tolos, imbecis, idiotas e ingênuos. Não consigo imaginar Jesus incitando revolta contra outra coisa que não seja a hipocrisia ou o pecado pessoal. A esse respeito, sim, creio que devemos ser vigorosos.

É bom lembrar que a bíblia nos mostra o quanto Deus está atento ao comportamento ímpio, seja ele dos cristãos ou não (Jó 20:5-29; Sl 37:1-38; 1Pe 4:18; 2Pe 3:7; Jd 1:4, 15). Curiosamente, não vejo o mesmo vigor dessas lideranças evangélicas quando o assunto é casamento. Estaria a família cristã mais afetada pelo homossexualismo ou pelo divórcio? O que você acha? Ora, o homossexualismo ou o divórcio dos ímpios não me surpreendem, mas a hipocrisia e o divórcio dos casais crentes me deixam perplexo. Neste caso, por que as lideranças evangélicas se levantam contra o homossexualismo, que é um fato externo, mas não demonstram a mesma indignação em relação ao divórcio que é um fato observado dentro das igrejas? Hipocrisia?

Vendo tudo isso, fico pensando: será que os evangélicos são apenas massa de manobra nas mãos desses líderes? Veja que o Pr. Malafaia já avisou que lançará a fúria evangélica sobre as empresas (de não crentes) que façam o que ele não aprova. E eu sei que ele é capaz de fazer isso: ridicularizar e lançar a massa evangélica (dele e de outros ministérios) contra quem ele quiser, inclusive contra os pastores que não aprovam o ele acha certo.

De modo semelhante, o Pr. Feliciano, aparentemente com a intenção de influenciar a massa cristã, conclamou-nos a reagir contra os atos de alguns participantes da Parada Gay. Ele mostrou algumas imagens que, acredito, sejam fatos isolados, e fez parecer que todo o grupo homossexual ofendeu todo o grupo cristão, gerando uma mal-estar em ambos os grupos. Depois de criar essa indisposição de uns contra os outros, sugeriu, implicitamente, que a nossa honra e a nossa fé cristã foi ofendida e que temos que reagir, inclusive nos tribunais humanos. Na sequência, concluiu com a subliminar sugestão de que, se nós não fizermos alguma coisa nessa “guerra”, somos omissos, de modo a nos fazer sentir mal ou culpados por isso.

Pronto! Agora, eu que nem mesmo fui realmente ofendido, tornei-me inimigo daquele que eu pretendia alcançar com a graça redentora de Jesus e estarei sujeito ao próximo comando desse líder evangélico. Devo, portanto, esperar um próximo vídeo no facebook desses pastores para me orientarem sobre o que eu devo ou não comprar, assistir, fazer ou quando devo sair às ruas para defender a honra de Jesus? Pior! Devo aceitar calado quando eles arrebanharem com seus conselhos, ordens e convocações o grupo que eu pastoreio, pois se eu ousar falar algo contra eles serei tratado como um “cão sem dono” e minha fé, minha inteligência e minha moral serão colocadas em questão.

Pois bem, eu sei que esses líderes famosos trazem muitas dúvidas na cabeça das pessoas. Ao mesmo tempo que os crentes escutam uma palavra com fundo de perfeição bíblica, são incitados a fazerem coisas que, a meu ver, Deus não aprova. Mas, penso que toda obra de Satanás tem que ser assim mesmo, para confundir. Se não fosse assim, seria fácil distinguir o falso profeta. Se ele fosse vermelho, tivesse chifres e rabo em forma de flecha, seria fácil identificá-lo. Mas, o próprio Jesus nos advertiu quanto aos falsos profetas e nos disse que só poderíamos distingui-los por suas obras. Ou seja, por seus discursos, carisma, inteligência, aparência física e liturgia não é possível saber quem são.

Sim, até eu fico confuso quando ouço “poderosas mensagens” destes líderes, revestidas de erudição, humor, psicologia, política e aparente espiritualidade. Mas, logo sacudo a cabeça para evitar o encantamento e procuro observar o modo de vida deles, suas práticas e comparo ao que Jesus disse, ensinou e fez. Assim, fico mais tranquilo e sigo meu caminho, mesmo sabendo que sou minoria, uma carta fora desse baralho.

Leila, querida, sei que você tem excelente formação teológica, é uma estudiosa da bíblia e tem mais conhecimento bíblico do que eu. Por isso, peço que considere minhas palavras apenas como uma opinião pessoal e rasa sobre o assunto, uma vez que eu não tive tempo para meditar mais detidamente sobre todas essas questões. É possível que eu esteja equivocado, mas, por enquanto, é assim que tenho vivido, apenas pregando o evangelho e pedindo a Deus que abra os meus olhos e me poupe de lutar por causas que não sejam realmente as dele.

“se possível, quanto depender de vós, tende paz com todos os homens;” (Romanos 12:18 RA)

Por fim, se você autorizar, gostaria de fazer uma revisão do texto e publicar essa nossa conversa no site celeiros, para despertar a mesma reflexão em outras pessoas.

Grande abraço!

Em 9/6/2015, Leila escreveu, via whatsapp: 

Pastor, vc me surpreendeu! Benignamente, diga-se de passagem.

Muito interessante seu ponto de vista nas análises das manobras de ambos os lados.

Eu não tinha me voltado para este foco, pois fiquei  triste com a "identidade" cristã percebida nas duas reações extremas dos públicos...

Eu percebi de um lado os cristãos resignados defendendo que ficar calado é oferecer a outra face, e de outro lado, os cristãos revoltados com as imagens... 

Não vi Pilar cristão estabelecido em nenhuma das duas e, então, me perguntei, como liderança: onde estamos errando com o ensino do povo?

Mas eu entendi que, como líderes precisamos ser como Jesus, focar o arrependimento da hipocrisia e do pecado pessoal.

Assim seremos discípulos de Cristo e discipuladores do Ide....

Entendi bem? Ou quer me acrescentar algo?

Sobre revisar e publicar, acho muito interessante, pois acredito que assim como eu não considerei a manipulação, muitos também não devem tê-lo considerado.

E sobre, conhecimento bíblico.... eu estaria na fila para limpar a poeira dos seus pés!!!  Te admiro muito, Glória a Deus pela sua vida.

Obrigada mais uma vez.

O SENHOR te abençoe e te guarde.

O SENHOR resplandeça o Rosto sobre ti e tenha misericórdia de ti.

O SENHOR sobre ti levante o seu Rosto e te dê a paz!

Resposta, em 9/6/2015, via whatsapp:

Perfeito! Você resumiu em poucas palavras o que eu tentei dizer com muitas...

Agradeço sua consideração por mim, deixando de lado os exageros, claro...

Grande abraço